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“Nós é que somos republicanos” |
A autocracia do Partido Republicano Português (PRP) não foi acolhida pacificamente. No Verão de 1911, Afonso Costa tentou eleger o seu aliado Bernardino Machado como Presidente da República. Machado Santos avisou logo: “a presidência do Sr. Dr. Bernardino Machado com um gabinete Afonso Costa, seria a guerra civil no país”. |
Entre 1911 e 1912, houve as “incursões” de Paiva Couceiro, mais de duzentos tumultos provocados pela Lei da Separação (tocando mais de metade dos concelhos do país), e muitas greves anarquistas. Mas foi o confronto entre republicanos radicais e republicanos conservadores que mais agitou o regime. Em Janeiro de 1914, os unionistas retiraram o apoio parlamentar a Afonso Costa – que se demitiu. Ainda conseguiu, porém, que lhe sucedesse um governo de “concentração republicana”, em que o PRP continuou a predominar. |
Um ano passado, em Janeiro de 1915, foi a vez de o Presidente da República, Manuel de Arriaga, confrontar o PRP. O presidente não podia vetar leis nem dissolver o parlamento. Como escreveu então um professor de Direito, a constituição mandava-o “ser o menos presidente possível”. Mas Arriaga aproveitou um protesto de oficiais do exército e o encerramento do parlamento após o fim da legislatura para nomear um governo de iniciativa presidencial, chefiado pelo general Pimenta de Castro, com a missão de organizar eleições legislativas a 6 de Junho de 1915. O PRP ficou em pânico: fora do governo, não podia ter a certeza de ganhar as eleições. |
Neste transe, o partido mostrou a sua verdadeira natureza. A 14 de Maio, em Lisboa, iniciou uma insurreição da marinha de guerra e de grupos de civis armados. Pimenta de Castro foi preso, e Arriaga forçado a resignar. Restabelecido no poder, o PRP fez as suas eleições, no meio da maior abstenção, para obter uma maioria absoluta no parlamento e eleger finalmente Bernardino Machado presidente da república. Na monarquia, onde as eleições também não eram origem de rotação no poder, havia o rei para promover a alternância. Na república, o presidente, eleito no parlamento e sem poder para o dissolver, dificilmente podia desempenhar esse papel. Com Arriaga, houvera uma surpresa. Com Bernardino, não era provável. O PRP parecia destinado a governar a república para sempre. |
No congresso do PRP na Figueira da Foz, em Fevereiro de 1914, Afonso Costa já acabara com todas as dúvidas: “Nós é que somos republicanos”. Os outros eram “partidos ou grupelhos sem orientação”. Não lhes augurou nenhum futuro: “terão de vir para nós ou vão para casa”. O máximo a que os outros partidos podiam aspirar era a de o coadjuvarem quando o PRP entendesse que lhe convinha promover governos de “concentração republicana”. A quem se lhe opunha, o PRP chamou geralmente “monárquicos” e “reaccionários”. Quando eram republicanos conhecidos, classificou-os como “traidores à república”. |
Depois de 1914, o PRP fez-se o grande promotor da intervenção portuguesa na I Guerra Mundial. A partir daí, os seus adversários passaram a ser “germanófilos”, isto é, já não apenas “traidores à república”, mas “traidores à pátria”. Décadas passadas, Manuel Brito Camacho lembrou: “foi um período de vida infernal”. Camacho apoiara Costa em 1913. Mas a partir de 1915, foi o principal crítico da sua política de “intervenção”. Em 1916, com Portugal em guerra, recusou submeter-se ao PRP na “União Sagrada”, ao contrário de António José de Almeida. Por isso, Camacho e os seus amigos foram “apontados à fúria assassina de uma horda selvagem”, num país em que “não havia liberdade para discutir um assunto que tanto interessava à vida da Nação”. |
Em 1913, a embaixada britânica descreveu Afonso Costa como “um tirano à latino-americana, sem qualquer ideia de conciliação ou de liberdade”. Não era totalmente exagerado. Sob o governo do PRP, as prisões estiveram cheias de centenas de presos políticos — em 1914, quando Afonso Costa caiu, foram amnistiados quase 600 – com muitos testemunhos de maus tratos e de tortura. |
Houve também milhares de exilados. Em Junho de 1915, quando o próprio “fundador da república” Machado Santos e três ex-ministros de Pimenta de Castro foram deportados para os Açores, António José de Almeida notou que iam “para um destino que a lei não determina, a que os tribunais os não condenaram, sem culpa formada, no escondimento e no silêncio, contra o direito das gentes.” O domínio do PRP consolidou assim uma cultura de cinismo sobre a legalidade e os direitos dos cidadãos. A brutalidade policial atingiu níveis inéditos. A 20 de Julho de 1915, em Lamego, um protesto de viticultores acabou com 14 manifestantes mortos; em Maio de 1917, em Lisboa, durante os motins provocados pela falta de pão, a GNR terá matado 38 pessoas. Tornou-se frequente as greves em Lisboa terminarem com centenas de operários presos nos porões dos barcos de guerra no Tejo. |
O PRP não proibiu partidos e nem sempre manteve censura à imprensa, mas organizou grupos de civis armados — a “formiga branca” — prontos para impedir a publicação de jornais contrários, ou exercer represálias sobre adversários. Era a “ditadura da rua”. Em 1917, até um jornalista do PRP admitiu que Afonso Costa parecia ter a “repressão como meio de solucionar problemas”. |
Nenhuma oposição podia esperar, sob o governo do PRP, ganhar eleições ou até fazer ouvir a sua voz à vontade. Para haver alternância seria preciso, antes, retirar o PRP do poder. E isso só seria possível recorrendo ao mesmos meios que o PRP usava para se manter no poder: a força. Daí, que o domínio do PRP se tivesse tornado uma sucessão de alarmes na imprensa, de confrontos nas ruas e de conspirações nas casernas. Esta espiral de violência minou irremediavelmente os fundamentos institucionais e culturais da democracia representativa em Portugal. Nunca, até ao fim do regime, deixou de haver protestos, dos mais variados ângulos políticos, pelas “deportações sem julgamento”, “espancamentos nas prisões”, e “prisão e incomunicabilidade sem fim”. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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