Foi em novembro do ano passado que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, afirmou, numa entrevista ao jornal Sol, que “a corrupção está instalada em Portugal” e que, não obstante ser essa, do seu ponto de vista, a realidade nua e crua, o poder político escolhia prioridades que esqueciam a Justiça, sem que houvesse “por parte dos responsáveis políticos a vontade de alterar alguma coisa”.

Dois anos antes, em pleno verão de 2021, já Henrique Araújo se pronunciara a favor da criminalização do enriquecimento ilícito e injustificado como “um bom instrumento para atacar a corrupção”.

O desassombro da quarta figura do Estado não obteve resposta, apesar de António Costa, chefe de governo desde 2015, ter sido ministro da Justiça com Guterres, e, supostamente, dominar as teias da lei, e não ignorar, decerto, as tendências da criminalidade.

Esse silêncio e a passividade que têm permitido o alastramento da corrupção, terão motivado Henrique Araújo a aproveitar, há dias, a cerimónia de posse da conselheira Graça Amaral, como nova vice presidente do STJ, para apontar o que entendeu ser “um ambiente propício a aventuras  legislativas“ que podem comprometer “a independência dos tribunais e o regular funcionamento do sistema de Justiça”.

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Numa palavra, o diagnóstico do presidente do STJ – que não pode ser tomado por um “fala barato” -, serviu agora  para se interrogar sobre a sobrevivência do próprio Estado de Direito como o conhecemos, por estar na calha o enfraquecimento das instituições, advertindo que as democracias “dão sinais evidentes de desgaste e deterioração”. E a corrupção, “inquilina” em diferentes patamares da pirâmide social, propaga-se como um vírus insidioso.

O quadro é sombrio e está longe de corresponder à radiosa convicção de António Costa, na hora da despedida em congresso, ao defender o seu “legado” diante dos correligionários, proclamando, em jeito de “slogan” de campanha, que “só o PS pode fazer melhor do que o PS”.

Essa visão, tão monolítica como arrepiante em democracia, justifica bem os receios expressos por António Barreto, ao identificar no PS a vontade de ser “um partido de regime”, comparando-o com outros que já o foram ou são, com “péssimas consequências políticas e sociais, sem falar na corrupção a pior chaga dos partidos de regime”.

Convirá, talvez, que a oposição à direita sacuda o entorpecimento e reaja, mantendo vivos os múltiplos casos que envolveram governantes e dirigentes socialistas, ainda a contas com a Justiça, para demonstrar, sem sofismas, que só o PS pode fazer pior do que o PS…

Ora, se o jornalismo não estivesse seriamente amarrado a uma crise endémica, com muitos jornalistas acossados pela precariedade no emprego e conscientes dela, já teria sido perguntado, talvez, a António Costa, como pode invocar, sorridente, o seu “legado” de oito anos de governo, quando deixa:

– a Justiça amolecida e adiada nas reformas, com tempos de decisão absolutamente excessivos e inaceitáveis, e com fortes constrangimentos internos e dissensões que transbordaram para o espaço público;

– os hospitais do SNS entupidos, com cirurgias e consultas atrasadas e filas de espera de muitas horas naquelas urgências que ainda conseguem abrir as portas;

– a Educação minada por greves e protestos dos professores, perturbada pela ideologia do género, baralhada com a lei dos lavabos unissexo, e em avançado estado de degradação perante o facilitismo, com parcas aferições para compensar os fracos saberes;

– a Habitação, um descalabro à vista desarmada, com menos 80% de casas construídas na segunda década deste século, comparativamente com a primeira (contas feitas, neste jornal, pela deputada municipal de Lisboa, Margarida Bentes Penedo);

– a Defesa… indefesa, com demissões que só pecaram por tardias nas indústrias do sector e uma profissionalização incipiente dos militares, com efectivos reduzidos e pouco motivados, comprometendo o estado de prontidão que se espera das Forças Armadas;

– a Segurança interna, instabilizada pelas lutas salariais e de carreira dos agentes da PSP e da GNR, cuja solução o ministro da tutela alega não caber a um governo de gestão, sacudindo a actual pressão na rua, com protestos que já pisam a linha da legalidade.

Se valorizarmos a crise que contaminou sectores nucleares – e outros que não estão melhor no “ranking” da governação -, quem poderá admirar-se com o facto, confirmado pelos indicadores mais recentes, de o País estar mais empobrecido, em relação aos seus pares europeus, e com um importante segmento populacional dependente do assistencialismo estatal, “adubado” cirurgicamente como engodo eleitoral?

E quem poderá admirar-se, ainda, com a sangria de jovens para o estrangeiro – segundo o “Atlas da Emigração Portuguesa”, citado pelo “Expresso” -, no qual se estima que 30% da geração com menos de 40 anos, nascida em Portugal, muitos com habilitação superior (no total, mais de 850 mil jovens, um número brutal), já mora e trabalha no exterior?

A demografia ressente-se, sendo preocupante a indiferença perante os avisos e os sinais caídos “em saco roto”, como se fossem conversas de café, enquanto grassam a mediania e a corrupção a preencher os vazios.

Onde se viu um ex-primeiro-ministro acusado de vários crimes – os poucos que passaram no crivo do juiz Ivo Rosa, hoje desembargador na Relação – esgotar uma década sem julgamento, sendo cada vez mais provável o arquivamento dos processos por prescrição?

Ou, ainda, onde se viu um primeiro ministro de um governo de gestão, demissionário, investigado pelo Ministério Público, a comportar-se como a “estrela da companhia”, fazendo sombra ao novo líder, ao protagonizar luzidos eventos, e já a sonhar com a presidência do Conselho Europeu?

O certo é que enquanto a defesa de Sócrates vai levando “a água ao seu moinho” e atafulha há muito os tribunais superiores com recursos, incidentes e outros expedientes dilatórios, para empatar o processo, António Costa aproveita “o tempo da Justiça”, e, mesmo sem ser ainda arguido ou acusado, vitimiza-se muito ao estilo do antecessor, para garantir que “podem ter-me derrubado, mas não me derrotaram”.

E como não se sentiu derrotado, Costa aprimorou-se na comédia em que se transformou o congresso socialista, aplaudindo, sem corar, o “legado” de Pedro Nuno Santos e de João Galamba no Ministério das Infraestruturas, alheio ao mais elementar pudor.

E ninguém o confrontou com uma pergunta óbvia:  como foi possível demitir dois ministros tão voluntariosos – segurando, até, um deles em conflito aberto com o Presidente da República -, e agora agir como se nada tivesse acontecido?

Mas será que Costa foi acometido de alguma grave amnésia, ao ponto de já se ter esquecido que desautorizou – e bem – o então ministro Pedro Nuno Santos, por este ter anunciado, na sua ausência e à sua revelia, a localização do novo aeroporto de Lisboa?

E quanto a João Galamba, estará António Costa a passar uma esponja sobre os incidentes indecorosos ocorridos no Ministério, que desaguaram numa intervenção mal explicada do SIS e no afastamento de um assessor do ministro?

A crónica das incongruências e dos desmandos durante os últimos governos socialistas, designadamente, na sequência das maiorias absolutas, explica muito do cansaço do eleitorado, capaz de reforçar a abstenção ou a votação no Chega de André Ventura, se Luís Montenegro não puser de lado os “paninhos mornos”.

Haja quem pergunte ao sempre sorridente António Costa se é este o “legado” de que se orgulha e quem aconselhe Pedro Nuno Santos a não tomar os portugueses por tolos, ao fingir uma “humildade” que não tem, e ao discursar como se estivesse virgem de qualquer governo.

Será prudente, aliás, que o novo secretário geral socialista, no qual a maioria dos militantes do partido “apostou as fichas”, evite a gabarolice dos seus “feitos” em relação à TAP – um escandaloso sorvedouro de dinheiros públicos – ou à CP, atolada em greves, cuja lógica ninguém estende, e que são há muito uma prática abusiva e lesiva dos utentes da ferrovia, com vantagem para as empresas rodoviárias.

Por estas e por outras, há um visível “downgrade” na classe política que só poderá oferecer ao País mais atraso, com a mediocridade alçada a lugares de topo na administração central e local, prevalecendo-se de uma sociedade civil muito dependente do Estado.

Se exceptuarmos o PREC no período imediato ao 25 de Abril, e a “tralha” ideológica que o marcou, a democracia consolidada em 25 de novembro foi servida por lideranças e actores políticos fortes, que se impuseram, naturalmente, à esquerda e à direita.

Seria útil e desejável que os alertas sobre a corrupção, que germina nas instituições, fossem encarados a sério para não desaguarmos noutro “pântano” como aquele de que fugiu Guterres.

A democracia não pode esperar. Nem confiar em iluminados, nem em falsas “humildades” para consumo eleitoral. Se continuar anémico e anestesiado, fragilizado nas malhas da corrupção, e com uma Justiça tardia e contraditória, o País perde o futuro. E nunca passará da “cepa torta” …