Seja-me permitido, por excepção, escrever na primeira pessoa, o que não costumo, para evocar o cinquentenário do “meu” 25 de Abril.
Vivi-o numa manhã já distante, jornalista feito, num vespertino de   tradição, um entre vários que emprestavam ao Bairro Alto – o “bairro da tinta” – um movimento inusitado, misto de ardinas e de carrinhas em correria frenética, para fazerem chegar primeiro o jornal às mãos dos leitores. Outros tempos em que o leitor esperava pelo seu jornal.

O vespertino de que falo era o Diário Popular, onde comecei e onde se estreou, também, nessas andanças jornalísticas, o Francisco Balsemão, filho e sobrinho de accionistas de referência, que, a certa altura, se despediu do jornal, desgostoso por este ter sido vendido, à revelia da sua vontade. Um desgosto que veio por bem e que seria o berçário do Expresso.

Quando eclodiu o 25 de Abril, já Balsemão tinha em carteira o Expresso, e acumulava dissabores com a Censura e receios de perseguição ao semanário que lhe poderia ser fatal, já no definhar do marcelismo.

Fica para outro lugar e momento o seu percurso jornalístico, de feitio teimoso e inovador, com o qual convivi, enquanto repórter, durante alguns anos.

Na manhã de 25 de Abril, com a “revolução dos cravos” na rua, a redacção do “Popular” estava mobilizada, com a ansiedade escrita à porta e à flor da pele.

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Coube-me em sorte a Baixa pombalina e o perímetro crucial adjacente ao Bairro Alto, entre o Largo do Carmo e o Chiado, para observar o “estado de alma” das pessoas que teimavam em circular, e agrupar-se, entre curiosas e amedrontadas, no meio das movimentações militares de desfecho ainda incerto.

De volta à redacção, e redigido com “nervo” o primeiro texto do dia, a chefia insistia para que não me esquecesse de enviá-lo … à Censura. A prática habitual.

Quando respondi que a Censura tinha acabado, a chefia duvidou. E, incrédulos, obrigaram-me a ir à sede da Censura – instalada num edifício perto do jornal – para me certificar, “in loco”, se era mesmo verdade.

Claro que lá chegado, já se atiravam pelas janelas arquivos e resmas de papéis, no meio de grande alarido. Com a pressa de reportar o que vira, nem um papel trouxe como prova material de que a Censura já não morava ali. E que estava em curso a “ordem de despejo” ….

Assegurado que já era possível escrever sem o “visto” da Censura (e como foi emocionante para o jornalista escrever, pela primeira vez, sem restrições nem amarras, ou recurso às entrelinhas, devedor apenas da sua consciência profissional), fechou-se a primeira edição do dia histórico, e mandou-se avançar a rotativa, imprimindo um título óbvio, rasgado à largura da primeira página – ”O Movimento das Forças Armadas preconiza a entrega do poder a um governo militar de transição“.

O pêndulo iria deslocar-se rapidamente para a esquerda.

A imprensa transfigurou-se a galope. Jornais porta-vozes do regime deposto entregavam-se a verdadeiros malabarismos para tentar sobreviver. Outros, essencialmente noticiosos, entre os quais o “Popular”, convertiam-se ao “golpe do dia”, fustigados pela panóplia de rumores e de golpes e contra-golpes que inundavam as redacções sem cerimónia, como matéria prima informativa.

Entretanto, os jornalistas, vários deles com antigas e conhecidas ligações ao “Estado Novo”, anunciavam-se, afinal, “infiltrados”, portadores de uma nova e arrasadora fé, de inspiração marxista. Não eram os únicos “convertidos”. Para grande irritação do PCP, entre os profissionais mais novos e escolarizados, alguns deles reclamavam-se maoistas ou trotskistas, fazendo frente, às vezes com sucesso, à crescente hegemonia comunista.

Foi a época, contudo, em que os militares afectos à linha mais ortodoxa do   PCP se impuseram no fluxo noticioso, enquanto os media aprendiam depressa o novo “catecismo” e alinhavam pelo mesmo diapasão revolucionário.

Foi um período de incertezas, com vantagem panfletária do Diário de Notícias, submetido à batuta de José Saramago, omnipresente na Direcção do jornal, e autor confesso de notas editoriais incendiárias na primeira página, onde, doutrinariamente, pugnava pela “beleza” de outra ditadura, esta iluminada pelo “sol da terra” soviético.

E enquanto nas redacções fervilhavam os “plenários” de braço no ar, e se multiplicavam as covardias diante de saneamentos sumários, o fervor revolucionário procurava capturar o tecido económico e social do País, com a vaga de nacionalizações, de comissões de “moradores” e de “trabalhadores“, além da chamada “reforma agrária”, com o esbulho de herdades dos “latifundiários”.

Por isso, indigna ver o Presidente Marcelo condecorar, a título póstumo, com a Ordem da Liberdade, militares que se distinguiram na luta contra a democracia e a liberdade, como Rosa Coutinho ou Vasco Gonçalves.

Houve, ainda, a chamada “dinamização cultural”, uma indignidade que terá antecipado, noutros moldes, as actuais aulas de “cidadania”, uma disciplina de frequência obrigatória, implicando temas como interculturalidade, sexualidade ou igualdade de género, “através de uma educação livre de preconceitos e de estereótipos de género (…)”

Neste contexto, custa ver, também, um programa comemorativo do cinquentenário, em larga medida impregnado de eventos de inequívoca pertença ao “protectorado” de esquerda comunista, que se apoderou dos ideais de Abril, desvirtuando-os.

Símbolo dos ideais de Abril, foi, sem dúvida, o capitão Salgueiro Maia, que conheci de perto e com quem mantive conversas bem reveladoras e estimulantes sobre o Movimento e o cerco do quartel Carmo (onde recolhera Marcelo Caetano, rendido, numa “Chaimite”), em serões de província, numa terra singular na qual nos cruzámos, ele por ter ali as suas raízes, pertencendo-lhe por direito próprio, e eu por adopção, atraído, em vésperas de Abril, pelo seu património histórico.

Em Castelo de Vide, onde Salgueiro Maia repousa no cemitério local, a vila dedicou-lhe justas homenagens, devidas ao herói filho da terra, incluindo um merecido museu numa ala castelã, de visita obrigatória.

Salgueiro Maia era um militar puro e idealista, imperturbável diante da “tralha” ideológica à qual nunca se curvou. Desapareceu prematuramente, vencido pela doença e desencantado com a marginalização que sofreu, incluída a instituição militar.

Nunca será demais evocá-lo, pela sua coragem e desassombro, que a outros faltou, e pela frontalidade como reprovou comportamentos em alguns dos seus camaradas “revolucionários”, que se tinham afastado da moldura democrática em que se enquadrava e reconhecia.

E enquanto Álvaro Cunhal tomava a rédea das “ocorrências”, quase sem contraditório – à excepção de Mário Soares, e de poucos mais, que se lhe opunham sem medo -, mais longe, nos territórios africanos, ainda sob administração portuguesa agonizante, intuía-se que a descolonização iria ser complexa e desiludir as expectativas dos europeus ali residentes.

Viajei por Angola, como jornalista, em 1974, meses depois “Revolução dos Cravos “– de Luanda, a Nova Lisboa, Sá da Bandeira, Porto Alexandre, Benguela e Lobito -, com o golpe militar ainda “a quente”, e pude então observar como os portugueses ali radicados (estimava-se à volta de 350 mil, em números redondos) , estavam decididos a saudar a independência e a ficar.

Pude aperceber-me, também, como Portugal teria as maiores dificuldades em gerir a descolonização, perante a desmobilização, à vista desarmada, da tropa ali sedeada. Dizia-se, sem cerimónias, que ninguém queria “apanhar o último tiro”.

De facto, pelo menos as noites de Luanda eram inseguras, pródigas em tiroteios entre facções rivais, que se digladiavam para marcar o terreno.

Pressenti que a realidade seria dolorosa. E não me enganei. Assistir-se-ia depois à derrocada das esperanças alimentadas pelos portugueses, valendo-lhes a “ponte aérea” que os trouxe de regresso à “metrópole”, muitos sem outros haveres para além da roupa que vestiam, no turbilhão da fuga.

Chamaram-lhes “retornados” e, pelo lado positivo, empreendedores e afeitos ao trabalho árduo, tiveram um efeito dinamizador na economia portuguesa, muito dependente e estagnada.

Se o “meu” 25 de Abril foi diferente de outros – desde logo pela “embriaguez” de escrever, sem arriscar os cortes do “lápis azul” dos censores -, cedo senti, também, os efeitos e a coação da coreografia ensaiada pelos defensores de uma “nova ordem” de orientação comunista.

Quando troquei, após o 25 de Novembro de 1975, a rua Luz Soriano, do “Popular”, pela avenida da Liberdade, então habitada pelo Diário de Notícias, julgava-me já suficientemente blindado a surpresas, mas errei nessa percepção.

O centenário DN, suspenso na sequência do 25 de Novembro, estava minado por gente afecta ao PCP e a outros agrupamentos de extrema esquerda, desde a tipografia à redacção, apostados em preservar o clima revolucionário, herdado da direcção de José Saramago, que afundara o jornal.

O DN fazia ainda parte do vasto sector estatizado, à conta do 25 de Abril, e a nova direcção editorial, que me convidara e assegurara a minha “transferência “, depressa verificou não ter sequer direito a um curto “estado de graça”.

Victor Cunha Rego e Mário Mesquita, dois socialistas moderados, que aceitaram dirigir o DN e assumir a sua reparação editorial, após o desvario ideológico de Saramago, viram-se “gregos” – juntamente com uma pequena equipa de chefia da qual fiz parte -, para controlar os danos, e enfrentar o ambiente de combate político que subvertia uma boa parte da redacção.

Precisaria de mais espaço – incompatível com esta crónica evocativa que já vai longa – para descrever o que foi a luta para salvar o DN, e recuperar a sua influência, fortemente abalada pelo consulado de Saramago que, nessa altura, ainda não sonhava com a plumagem de Nobel da literatura, empenhado como estava em cultivar os princípios da nova ditadura de obediência comunista.

Foram tempos difíceis. Cunha Rego deixaria, entretanto, a Direcção do DN, dividido entre a política, a diplomacia e o jornalismo.

Coube a Mário Mesquita – um dos fundadores do PS, em abril de 1973, na pequena cidade alemã de Bad Münstereifel – assegurar a continuidade do projecto, primeiro com João Gomes, outro socialista moderado, e depois, já investido como director do jornal, com o autor destas linhas.

Foi um desafio ganho, com o DN a recuperar vendas e influência, “viciado” na sua independência editorial, apesar de a empresa ser pública, o que lhe acarretou não poucos dissabores com o governo socialista, que “compreendia” mal esse distanciamento.

Mesquita viveu intensamente o projecto e, em função deste, não lhe faltaram os desaguisados com Mário Soares, a quem admirava, embora com agudo sentido crítico, até se afastar do jornalismo, atraído por uma carreira académica de sucesso, sem nunca perder, contudo, o “bicho” do papel de Imprensa.

O DN seria privatizado, com proveito de alguns, e hoje é uma sombra de si próprio, um fantasma que conserva apenas o título, despojado da sua sede histórica na avenida da Liberdade, vítima de muitos erros acumulados, editoriais e de gestão, e, sobretudo, da ganância e do oportunismo de vários actores com nome na praça.

Ao comemorar meio século, o 25 de Abril coabita com um desaire histórico das esquerdas, e com a ascensão de populismos à direita, que arrebanharam mais de um milhão de votos, elegendo, ironicamente, 50 deputados.

Por sinal, e no quadro desse crescimento à direita, um estudo promovido pelo ISCSP e agora divulgado, revela que uma larga maioria dos portugueses se reconhece na democracia. Mas, em contrapartida, 47% dos inquiridos viam com bons olhos, um “governo de um líder forte, que não tenha de se preocupar com eleições”, e que pastoreasse o país por uns tempos …

É um dado deprimente. Mas esse é um triste sinal da realidade de um povo farto de jogos políticos, sentindo os políticos alheios aos seus reais problemas.

Comemoremos, pois, Novembro, depois de Abril, antes que seja tarde. Porque foi graças ao 25 de Novembro que não perdemos a democracia, nem a liberdade.  Ou como referiu, bem recentemente, Ramalho Eanes, a quem a democracia muito deve, que “o esquecimento do 25 de Novembro não ajuda a democracia, porque a História não se apaga e é regressando à História, não endémica e nostalgicamente, que aprendemos a evitar erros futuros”. 

Um esquecimento que as esquerdas comunistas quereriam fazer vingar, para se ressarcirem da derrota humilhante que sofreram nessa data. Com uma comissão já anunciada, e o PCP fragilizado, talvez a efeméride obtenha, finalmente, a visibilidade merecida. E seja a homenagem que merece.