A União Europeia tem uma linha de ataque bem definida para a política conjuntural, em especial no quadro da união económica e monetária, em estreita interação com as políticas domésticas dos Estados membros. No entanto, para os “riscos globais” e as “grandes transições” a política europeia peca manifestamente por defeito. Este facto está, também, na origem de seu défice de legitimação política. Ora, no exato momento em que a União Europeia mais precisava de tomar conta destas duas grandes ocorrências cosmopolitas, este é, também, o momento em que estão de regresso as correntes e os partidos nacionalistas e populistas. A União Europeia vive verdadeiramente o dilema do prisioneiro.

Os “riscos globais” e as “grandes transições” do nosso tempo – mudança climática, alteração demográfica, transformação digital, geopolítica migratória, democracias iliberais – justificam, só por si, que mudemos o nosso ângulo de observação quando observamos esse objeto não-identificado que habitualmente denominamos de União Europeia. Se a sociedade política europeia não for capaz de ganhar o distanciamento necessário e suficiente para tomar conta destas “grandes ocorrências”, então a divergência crítica dos acontecimentos não poderá impedir, mais uma vez, a maldição e a consumação da tragédia dos comuns.

Uma federação europeia do risco global

Neste tempo de modernidade tardia da sociedade contemporânea, a relação tempestuosa entre os problemas sociais e os riscos globais pode convergir, dramaticamente, para um “Estado de Necessidade” ou um “Estado de Risco”, em que tudo ou quase tudo vive em redor da equação do risco global. As razões desta emergência são, por demais, evidentes e, só por si, parecem justificar uma “federação europeia do risco global”, pelas razões seguintes:

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  • Os custos do risco global são incomportáveis para os Estados mais vulneráveis e o controlo do risco global é uma tarefa infindável;
  • O risco global tem uma elevada complexidade técnica, a lei não controla os efeitos externos do risco, a internacionalização do risco enfraquece o Estado soberano;
  • A segurança e a solidariedade em matéria de distribuição de riscos tornam-se uma matéria politicamente muito sensível;
  • Uma pluralidade de atores em vez de um só ator soberano obriga a uma transição da regulação estatal para a governança do risco global;
  • A judicialização crescente da sociedade do risco, uma vez que não há consenso sobre as questões de natureza científica, pode colocar o poder judiciário na incómoda situação de tomar posição sobre questões controversas, muito para lá da interpretação dos textos jurídicos respetivos;
  • No limite, podemos precisar de uma “constituição de risco”, uma nova teoria do direito para albergar, juridicamente, a distribuição dos riscos inerentes à sociedade contemporânea.

De facto, na sociedade cosmopolita em que vivemos, a colisão entre diferentes culturas de risco cria um campo de forças energicamente muito sensível. Daqui nasce uma tensão permanente cheia de imponderáveis e efeitos não-intencionais. Sabemos que a distribuição de riscos é desigual e que os riscos globais relativizam as posições de classe. Sabemos que o risco global não possui evidência científica suficiente, mas, também, que o risco é socialmente construído, seja na sua definição, legitimação, socialização, regime de compensação de danos, tudo aí é socialmente construído. Sabemos, inclusive, que na esfera pública global as perceções de risco dependem de encenações ou “guerras de risco” visando obter determinados ganhos de causa, por exemplo, na relação sempre difícil e controversa entre mercado de seguro privado e socialização pública de prejuízos.

Vivemos na aldeia global, os riscos globais são um problema do nosso quotidiano. A tabela seguinte dá bem conta do “campo de restrições sistémicas” que os riscos globais significam. O que esta tipologia nos revela, de mais assustador, é a natureza constituinte e estrutural dos riscos globais, uma espécie de “diabo à solta” que poderá, mais tarde, justificar o “Estado de risco” a que fizemos referência. Desta tipologia podemos extrair ensinamentos que sejam úteis para uma sociologia do risco global, mas, também, ensinamentos que podem justificar a construção de uma federação europeia dos riscos globais e dos bens comuns. Vejamos a iminência e a urgência de alguns problemas fundamentais implicados por esta tipologia.

Tipologia dos riscos globais

Em primeiro lugar, atravessamos uma grave crise das organizações multilaterais que regulam a globalização económica, comercial e financeira; temos, portanto, um risco sistémico elevado devido à sensibilidade dos fatores de propagação, que não está ao alcance das sociedades nacionais resolver e que só uma federação europeia, agindo em nome dos Estados nacionais, está em condições de enfrentar.

Em segundo lugar, por falta de governança global assistimos ao regresso em força da geopolítica e dos riscos que lhe estão associados, por causa da água, dos solos, dos alimentos, da bioenergia, da biodiversidade, só para falar nos problemas de produção e comércio de bens alimentares; mas poderíamos acrescentar a segurança dos abastecimentos energéticos, o apoio ao desenvolvimento, as correntes migratórias, os vários tráficos clandestinos de mercadorias e o terrorismo internacional que os suporta. Em consequência, temos riscos geopolíticos variados e elevados, ampliados pela arquitetura do sistema de relações internacionais pós-guerra fria e pela emergência do 2º mundo, que só poderão ser adequadamente apreciados e administrados por uma federação europeia dotada de meios próprios substanciais.

Em terceiro lugar, por falta, ainda, de governança global, mas, também, por falta de consenso na comunidade científica (acerca do verdadeiro impacto das alterações climáticas) temos os riscos ambientais sob fogo cruzado e, também, muito jogo dissimulado acerca dos mercados e das políticas ambientais. Sabemos que os riscos globais alteram a mobilidade de pessoas, plantas e animais e, portanto, a geografia humana, a geografia da produção e a ecologia agrária e, também, novos problemas de saúde pública devido à propagação dos vetores que transportam os micro-organismos transmissores. Em consequência, temos a porta aberta para todo o tipo de riscos ambientais, dos mais impressivos (nucleares, biológicos e químicos) aos mais pessoais (a multiplicação de vários tipos de febre e gripe), a justificar, mais uma vez, a legitimidade de uma federação europeia dos bens comuns.

Em quarto lugar, os riscos sociais são muito críticos porque, como já dissemos, uma grande maioria de riscos são outras tantas construções sociais. Os riscos sociais não se resumem ao desemprego estrutural e às suas consequências sociofamiliares e individuais; agora, está, também, em causa a “desconstrução” da própria cultura de risco na exata medida em que as culturas de risco e prevenção que lidam com a perceção dos riscos globais, são, também, culturas de medo, onde pode germinar a “ameaça perfeita”. Isto é, os riscos sociais são elevados onde germina a iliteracia do risco global, o discurso técnico-científico dissimulado e/ou simplista, a retórica política de minimização e a falta de contraditório acreditado, em suma, onde prevalece uma cultura de emergência sobre uma cultura de prevenção do risco. Neste contexto, a federação europeia seria a sede apropriada para acabar com a cultura do medo e para restabelecer a verdade da justiça e da ética sobre uma cultura de emergência.

Outro campo de risco e segurança pode explodir abruptamente com consequências inimagináveis sobre largos estratos de população. Refiro-me à segurança societal, em áreas como o abastecimento de água e eletricidade, a qualidade ambiental e alimentar, os derrames petrolíferos, os grandes incêndios e as catástrofes naturais. Prevenir, medir, remediar, adaptar e compensar todos estes impactos é uma tarefa gigantesca, mas estes choques específicos de grande amplitude revelam-nos, ao mesmo tempo, a urgência de uma política europeia de prevenção e gestão de riscos globais que, só por si, já justificaria uma União Europeia de atributos e características federais.

Finalmente, os riscos tecnológicos são o “paradoxo preferido do capitalismo”, o problema e a solução ao mesmo tempo. Para o capitalismo o problema é a dose, todos os problemas se resolvem com uma dose adequada de tecnologia, mobilidade e organização: dose a menos não resolve o problema em questão, dose a mais cria um novo problema devido à sua eventual propagação sistémica. Esta é a razão pela qual a definição do risco científico e técnico é um problema calculado, probabilístico, de risco previsível, a menos que um erro involuntário, ou um “cientista louco”, sejam a justificação objetiva para a ocorrência de risco. Nesta categoria de risco em particular, os progressos em matéria de “espaço comum de investigação e desenvolvimento” são um passo importante, mas, apenas, um primeiro passo no campo imenso de possibilidades que está ao alcance da federação europeia dos bens comuns.

A União Europeia e as “Grandes Transições” do nosso tempo

Na sociedade dos riscos globais e das grandes transições o espaço público da União Europeia estará, doravante, em constante ebulição. Digamos que haverá uma reconstituição contínua da sociedade, talvez, mesmo, um excesso de diversidade social. As alterações nas leis de imigração, nacionalidade, trabalho, segurança social e inserção social são, desde já, um sinal evidente dessa reconstituição permanente. Mas a iminência de conflito social é uma possibilidade sempre presente. O antigo Estado-Providência lidava com um stock de problemas sociais cujas disfunções, ele próprio, institucionalizava. Desta vez, o velho Estado-Providência trata com um fluxo de problemas sociais, cuja fonte não controla porque, muitas vezes, sedeada em território transfronteiriço ou, mesmo, extra-territorial.

As próximas décadas reservam-nos grandes incógnitas e grandes transformações. A transição ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática, o Antropoceno). A transição digital e a incógnita da inteligência artificial (o advento do transumanismo). A transição produtiva e a incógnita das migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais, o advento de uma nova geopolítica). Além destas poderíamos ainda juntar a transição demográfica e a nova estratificação social e, também, a transição política e a emergência das democracias iliberais e autoritárias. Serão estas transformações convergentes ou divergentes? Poderemos esperar uma Grande Transformação, um Novo Momento Polanyi (Covas, Observador,2018.04.08)?

O Momento Polanyi (Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944) anuncia uma transformação civilizacional e cultural das sociedades quando se constata que as instituições, na sua generalidade, deixaram de acompanhar as mudanças introduzidas pelas forças produtivas e sociais dominantes. Se as transições que enunciámos convergirem na mesma direção, poderemos estar a anunciar a próxima Grande Transformação.

Porém, a grande dúvida que nos assalta neste momento é descortinar qual a linha de rumo que irá a tomar a União Europeia quando sabemos que a política europeia está cercada por uma espécie de “cordão geopolítico sanitário”. Na parte oeste pela turbulência transatlântica do Brexit e de Trump, no sul mediterrânico pela série de estados-falhados à sua volta, na parte leste pela iminência de uma guerra generalizada entre xiitas, sunitas e semitas, no lado norte por um regresso da guerra fria por virtude do expansionismo russo. É quase inevitável, neste contexto, a iminência de um evento geopolítico de grande impacto, como é indubitável uma tensão constante para condicionar os acontecimentos e os episódios da vida política doméstica de estados-nação cada vez menos soberanos.

Por outro lado, temos muitas dúvidas de que a União Europeia tenha, neste momento, as competências políticas necessárias e suficientes para promover a convergência daquelas grandes transições e, dessa forma, contribuir para o desanuviamento geopolítico e geoestratégico em que o mundo se encontra, num estado de esquizofrenia política sem paralelo. E se assim for não há convergência ou Grande Transformação que aconteça, o mesmo é dizer, estaremos novamente à beira de uma tragédia dos comuns!

Senão vejamos.

Já aí está a polémica acerca de um novo regime climático, designado por Antropoceno. A severidade e a hostilidade do clima afetam a nossa vida quotidiana, avisando-nos de que a transição ecológica é um horizonte incontornável de sentido para a vida humana, um sentido de finitude, de limite e responsabilidade. Se não respeitarmos a natureza, não haverá coevolução benigna homem-natureza e o nosso quotidiano poderá transformar-se num verdadeiro inferno.

A segunda grande transição diz respeito à transformação digital, a grande força transformadora do nosso tempo. Feita de liberdade e transgressão, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade.

A terceira grande transição diz respeito às grandes migrações, de pessoas que buscam trabalho e refúgio, de bens e serviços que buscam a melhor deslocalização para serem produzidos, de capitais que “enlouquecem” em busca da melhor rentabilidade, de plantas e animais que buscam novos habitats para poderem sobreviver. É verdadeiramente a luta pela vida. Acrescentem-se as novas questões sociais da sociedade digital, da sociedade sénior e o agravamento das desigualdades de rendimento que já levaram à pulverização da sociedade política e ao regresso dos nacionalismos e populismos.

E perante estas grandes transições, será que os seus principais protagonistas têm consciência, em toda a sua plenitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência. É aqui que nos encontramos, numa encruzilhada de Grandes Transições, e é aqui que a sociedade política europeia falha estrondosamente a sua missão histórica de uma revolução europeia dos bens comuns.

E, no entanto, no plano oposto, em múltiplas iniciativas empreendidas à escala humana, é possível entrever com clareza o outro lado do mundo. Falo das inúmeras abordagens colaborativas e solidárias para explorar, justamente, a convergência das transições. Trata-se de privilegiar a economia das multidões sob a forma de plataformas coletivas, utilizando as tecnologias digitais para promover a inteligência coletiva territorial à escala humana, local e regional. A ecologia, a economia e a tecnologia poderão convergir em muitas áreas: as economias de energia e redução das pegadas respetivas, ao serviço da intermobilidade e contra a obsolescência e o desperdício, ao serviço da circularidade da natureza pela aplicação da política dos 4R, pela mobilização e participação dos consumidores e cidadãos, pelas economias de proximidade e os consumos partilhados e colaborativos, pelas dinâmicas de inovação social inclusiva e o desenvolvimento do chamado 4º setor, pela smartificação dos territórios e sua inteligência coletiva, pelas políticas de abertura e livre acesso de dados e segurança privada.

Enquanto tudo isto acontece, as democracias liberais e participativas, a sociedade do conhecimento, a economia das multidões e das plataformas colaborativas preparam os próximos combates contra os nacionalismos, os populismos, os autoritarismos, os racismos e o regresso em força dos fascismos mais variados.

Notas Finais

No tempo de Karl Polanyi (1944) o drama dos limites, a tragédia dos comuns e a noção de risco moral não tinham o alcance e a amplitude que têm hoje. Além disso, o progresso e a utopia estavam à sua frente, hoje, à nossa frente, parece estar uma mistura acre de ansiedade e distopia. Com efeito, e em face destes riscos globais e grandes transições, há dúvidas pesadas que permanecem:

Será que, perante o drama dos limites e a tragédia dos comuns, a transição ecológica contribuirá para a repolitização o nosso tempo, recolocando a equação do tempo no registo certo?

Será que a transição e a adição digitais, ao contrário, contribuirão para despolitizar as nossas relações pessoais e sociais, tornadas cada vez mais egoístas e narcísicas?

Será que o medo, a ansiedade e a insegurança transformarão a esfera pública num espaço de transação de inúmeros riscos e perigos que ameaçam constantemente a nossa reputação, uma espécie de grande irmandade entre o Big Data e o Big Brother?

Será que os principais protagonistas da política contemporânea têm consciência, em toda a sua amplitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência e, desde logo, os principais protagonistas da política europeia?

Como não tenho respostas definitivas para estas questões, julgo, em jeito de síntese final, poder afirmar o seguinte:

  • Estamos, claramente, a sair do multilateralismo do pós-guerra e a entrar numa nova era de equilíbrio de poderes e áreas de influência, onde a corrida ao ciberespaço e as várias encenações cibernéticas em redor da segurança e da insegurança serão um dos principais scripts do próximo futuro.
  • Os episódios e as ocorrências climatéricas graves e severas tornar-se-ão mais intensas e mais frequentes minando a confiança e a reputação dos estados e das organizações internacionais, onde se incluirão as guerras por procuração, os refugiados ambientais, a fome e as epidemias, o colapso dos mercados de trabalho e da ajuda internacional que, em conjunto, estarão na origem de grandes fluxos migratórios.
  • A crise da representação política, as democracias iliberais e os fascismos sociais de várias colorações tomarão conta da ocorrência em muitos países, praticando uma política do condicionamento e do medo onde as primeiras vítimas serão as políticas migratórias e o acolhimento dos fluxos migratórios, mas, também, as políticas ambientais e a transição ecológica.
  • No lado da revolução tecnológica e digital, o progresso da inteligência artificial e o advento da singularidade transumanista e pós-humanista acontecerão inelutavelmente, à mistura com uma despolitização quase generalizada por via da alienação e adição digitais.

Perante tão grandes desafios, a grande interrogação que permanece é saber se a federação europeia dos riscos globais e dos bens comuns, nas suas novas funções, pode assumir as “Grandes Transições Civilizacionais” como fator poderoso da sua legitimação e, nessa linha de rumo, o que deverá e poderá fazer para acolher positivamente a enorme diversidade criativa e o pluralismo social do século XXI.  Repito, a crise generalizada do multilateralismo não anuncia nada de bom. É preciso impedir que a extra-territorialidade que ela fomenta seja uma terra de ninguém, qual buraco negro onde tudo pode acontecer, a começar pela guerra das inteligências (Laurent Alexandre, 2017). Será, seguramente, uma grande dor de cabeça e uma tarefa gigantesca para os líderes mundiais. Em nome do futuro e dos bens comuns da humanidade, quem, afinal, deseja investir em mais e melhor humanidade?

E o que espera a União Europeia? É um imperativo categórico distinguir entre uma política de conjuntura mais ou menos encaixada nos ciclos políticos domésticos e uma política estrutural-civilizacional de médio e longo prazo com o foco nos grandes riscos e na convergência das grandes transições. Creio mesmo que se justificaria plenamente a criação na União Europeia de um programa para os riscos globais e as grandes transições e, nesse sentido, a formação de um conselho europeu dedicado aos assuntos geopolíticos e geoestratégicos globais.

Professor da Universidade do Algarve