O Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros arquivou, há uns dias, a queixa apresentada por um grupo de 18 enfermeiros contra a Bastonária desta Ordem. Na motivação da queixa apresentada, esteve um conjunto de afirmações imputadas à Bastonária Ana Rita Cavaco, publicadas na página pessoal do Facebook daquela. Dentre as afirmações, objeto do processo disciplinar, constam as seguintes: “A gorda fura filas”, alegadamente dirigindo-se à Senhora Presidente da Câmara Municipal de Portimão; e “Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho”, publicação que alegadamente visou o Senhor Secretário de Estado da Descentralização e Administração Local, Jorge Botelho, e a Senhora Diretora Regional do Instituto da Segurança Social, Margarida Flores.

O acórdão daquele Conselho Jurisdicional terá concluído pela inexistência de infração disciplinar, sustentando a decisão de arquivamento no facto de a Senhora Bastonária se ter limitado a emitir “uma opinião pessoal, subjetiva, suportada pela invocação de factos que apontam para essa mesma opinião, não é um discurso objetivamente difamatório, pelo que nele não pode ser assacada qualquer infração cometida e consequente responsabilidade disciplinar”, e que, ademais, “estamos perante o exercício de liberdade de expressão”.

Ora, cremos – com a devida vénia – que a decisão daquele Conselho confunde a esfera íntima, privada, com o âmbito público alcandorado na especial qualidade em que aquela profere as expressões postas em crise.

Não esqueçamos que a enfermagem, tal como a advocacia ou o exercício da medicina, como tantas outras, é uma profissão de interesse público e, como tal, o seu exercício encontra-se sujeito a critérios legais e regulamentares sob a tutela da Ordem respetiva, estas, constituindo, na expressão do saudoso Professor Diogo Freitas do Amaral, “pessoas coletivas, de tipo associativo, destinadas a assegurar autonomamente a prossecução de determinados interesses públicos pertencentes a um grupo de pessoas que se organizam com esse fim”1.

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Significa, pois, que o exercício destas profissões tem, no plano deontológico, que obedecer a um conjunto de normas – no caso, o Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, (Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de abril) que, à semelhança, verbi gratia, do Estatuto da Ordem dos Advogados, encerra um corpo normativo, altamente temperado pela ética, dedicado ao concreto modo como é exercida a profissão, corpo normativo que vulgarmente é denominado por deontologia profissional.

Os deveres deontológicos são claros.

No caso do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, os membros efetivos da Ordem estão, entre outros deveres, obrigados a contribuir para a dignificação da profissão, cfr. art. 97.º, n.º 1, al. g).

Tal preceito encontra-se vinculado a um princípio geral de integridade, na medida em que o Enfermeiro é indispensável ao sistema de saúde e à sua administração, e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce. Entendo, aliás, que esta exigência é qualificada perante a especial qualidade do cargo que representa toda uma classe, como é o bastonário por, naturalmente, nele avultar uma acrescida responsabilidade de integridade.

Não se nega que o cargo de bastonário, por cuidar da defesa dos direitos e interesses (assim deveria ser) dos associados da Ordem respetiva, se aproxima – no que tange pelo menos ao discurso belicoso e acérrimo -, com o devido respeito, ao de um dirigente sindical.

Todavia, o exercício intrínseco da salvaguarda dos direitos e interesses dos membros efetivos de uma Ordem não pode constituir carta de alforria que exorbite o quadro normativo deontológico que é garante e condição de sobrevivência de qualquer profissão, ainda que tal exercício venha aparentemente desonerado pelo órgão jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros por um conceito enviesado de liberdade de expressão. E, tanto mais, que esta liberdade de expressão não é um direito absoluto, pois que tal direito conhece limites, designadamente, os que decorrem de direitos de personalidade, como é o caso do direito à honra, tributário de uma ideia da dignidade da pessoa humana.

Foi, por isso, com muito agrado que assisti ao ato de contrição alheia da Bastonária, a Senhora Enfermeira Maria Augusta Sousa. Agrado que foi acompanhado, seguramente, por bem mais do que os 18 enfermeiros subscritores da participação.

Sou da opinião que as afirmações proferidas pela Senhora Bastonária são aptas a violar o direito à honra dos visados e em nada contribuem para a dignificação da profissão, pelo contrário.

Ainda que qualquer cidadão tenha direito a expressar a sua crítica pessoal, seja qual for as vestes em que o faz, não pode nunca esquecer que o cargo para que se candidatou implica, em todas as suas condutas, privadas ou públicas, uma concentração mediática de atenção, que, inevitavelmente, vai associar os profissionais que legitimamente representa às condutas públicas que assume. E, tanto mais, que é precisamente no oportunismo e conveniência dessa qualidade, que se assume determinado tipo de conduta.

Considero, pois, com o devido respeito, que mal andou o Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros.

A dignidade de um bastonário não é só a dignidade de um Enfermeiro. Ela vai muito para lá do exercício da profissão, inclusivamente, com irradiação para lá do termo do mandato, razão pela qual estes conservam – honorariamente – o título correspondente ao cargo mais elevado que desempenharam, honra como tão bem nos demonstrou a Senhora Bastonária Maria Augusta Sousa.

É, em última análise, a dignidade de uma classe que muito devemos respeitar e a quem tanto devemos.

(1) Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3ª edição, Coimbra, 2006, pp. 423-424