Um dia, teria de ser. Falemos do Chega. O Chega é um fenómeno auto-explicativo: está tudo no nome. Não é uma ideologia, não é uma filosofia, não é uma doutrina, não é uma corrente, não se inscreve numa tradição de pensamento político, não se compromete com uma posição no mapa partidário, não tem uma ideia própria. O Chega define-se por oposição (recordam-se que esteve para se chamar Basta?). Não é mais do que um estado de alma. É uma expressão de insatisfação, de cansaço. O Chega podia ter sido só uma interjeição.  O Chega, assim permitisse a lei, e podia bem chamar-se Irra. O Chega é um eufemismo, já que não pode chamar-se **da-se.

Nada disto significa que não seja legítimo. É claro que é legítimo. Vem do mesmo descontentamento com o momento histórico da democracia que vamos testemunhando um pouco por quase todos os países onde ela existe. Recolhe os descontentes, os desiludidos, os que se sentiram traídos, preteridos, enganados pelos políticos – muitas vezes, com razão. A partir daqui, nada os une, mas essa é uma questão para verem depois. Como o outro, também eles não sabem para onde vão, só sabem que não querem ir por aqui.

O Chega não é, portanto, “normalizável” porque o Chega é, por definição, normal, normalíssimo, mais normal não há. Se não fosse normal, não teria sido reconhecido pelo Tribunal Constitucional e, a partir do momento em que o foi, toda a obsessão de certa esquerda em ostracizá-lo só lhe dá mais força, porque lhe dá mais razões de queixa, que é tudo o que partidos como o Chega sabem fazer: queixar-se. Permite-lhes, sem esforço, reforçarem a sua única mensagem: serem o inimigo do status quo, os renegados que o sistema instalado tenta, alegadamente, amordaçar. Alguma esquerda faz isto por ingenuidade, outra deliberadamente, para assustar eleitores e mascarar-se de herói antifascista. E, nesse jogo perigoso, arrisca-se a fazer-nos, um dia, pagar todos muito caro por isso.

A questão com o Chega não devia, pois, ser procurada na diabolização do dito, nem no tempo de antena grátis que, todos os dias, lhe dão. A questão devia ser esta: porque é que o Chega cresce e o PNR nunca saiu da irrelevância?

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Apontar o dedo aos tiques racistas e xenófobos, tresler a ironia do orador que vai à convenção dizer que é fascista, gritar “Não passarão!” para o aplauso fácil da nossa turba, são tudo tiros na água. O problema com o Chega não é ser um abrigo de extremistas, que irão sempre procurá-lo em qualquer lado; é confundir-se com uma opção também para não-extremistas. Para os que já votaram PS, PSD, CDS – até no PCP – e que sentem que já nenhum deles os defende. O Chega não é a ascensão dos extremistas; é o fracasso dos moderados. Ao contrário do PNR, tem sabido fazer a transição do nicho de uns para o mainstream de outros. É muito mais perigoso quando não fala de ciganos nem de castração química do que quando fala. Porque o Chega não é uma ameaça potencial para o país por ser ou não racista; é uma ameaça para o país porque não faz ideia do que está a dizer. Nem quando fala de expulsar imigrantes como solução para o que quer que seja, nem quando fala de penas de prisão perpétua como solução para a justiça, nem quando fala de impostos, nem quando fala de reformas estruturais, nem quando fala do SNS, nem quando fala de pensões.

O Chega, que cresceu até ao ponto terrível de ter de começar a apresentar ideias próprias, limita-se a papaguear uns chavões que ouve dizer aos outros e que, depois, vai gerindo consoante a maré. É por isso que já quis fechar o SNS e agora quer salvar o SNS, é por isso que já quis privatizar a TAP e agora quer a TAP pública, é por isso que quer reduzir loucamente os impostos e, ao mesmo tempo, aumentar loucamente as pensões. Quer à força fazer um batido de Bolsonaro, João Paulo II, Nossa Senhora de Fátima e lobby americano das armas e convencer-nos de que isto é congruente. Começou por achar que era libertário; depois, virou para a social-democracia; agora, caminha a passos largos para ser mais estatizante do que o Bloco. Sim, o Chega ainda se chama Chega, mas, qualquer dia, muda para o E eu também!

A última, a que nos fez, enfim, sentar a escrever sobre este assunto, é a colagem a Sá Carneiro. Sim, porque o líder do Chega, que já se fez de próximo de Passos Coelho, agora decidiu saltar 40 anos para trás no tempo, por cima de Cavaco Silva, e dizer que é a reencarnação directa do fundador do PSD. Percebe-se: Passos e Cavaco ainda cá estão para o contrariar; Sá Carneiro já não pode. Mas, como diria Mário de Carvalho, é preciso não confundir o género humano com o Manuel Germano. Nem a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obras. Nem Sá Carneiro com só carneiro.

Num país em que quase toda a gente está zangada com o PS – os médicos, os enfermeiros, os polícias, os professores, os pais dos alunos sem professores, os funcionários dos tribunais, as pessoas que precisam dos tribunais, os jovens que têm de emigrar, as famílias dos jovens que têm de emigrar, os senhorios, os inquilinos, as pessoas que sofrem à espera de ser atendidas numa urgência ou andam de hospital em hospital para conseguirem ter um filho, os empresários e todos aqueles que têm o desplante de ganhar mais de 1500 euros por mês e cujo ordenado não depende da administração pública – e em que o PSD parece incapaz de entusiasmar meia dúzia destes descontentes, o Chega vai recolhendo descontentamento como se não fosse um partido, mas um grande livro de reclamações. Uma caixa de sugestões da paróquia. Uma só grande caixa de comentários da internet, com toda a sua zanga.

Porque o seu programa político é, fundamentalmente, um: a frustração – ao serviço de um indivíduo adepto do culto da personalidade.

Se isto chega? Claro que chega. Para o desastre.