A determinado momento, todos queríamos escrever como Paul Auster. Com aquela sofisticação, aquele cosmopolitismo, e sobretudo aquela religião moderna de encontrar um sentido para o acaso. Eu próprio escrevi e publiquei em 2009 um romance – falhado – de aspirações austerianas. Até a pinta, a elegância física, batia certo. Era o escritor que queríamos ser, a bater à máquina num loft de Brooklyn, com vista para Manhattan, a grande meca do fim de século, onde todos os encontros e desencontros eram possíveis e, portanto, mais possíveis e fascinantes as coincidências (na verdade, Auster escrevia à mão, mas não o sabíamos à época).

Sim, também a nossa fantasia com Nova Iorque foi moldada por ele, muito antes de friends e sexos e a cidade e de toda a criatura se sentir, ao que parece, legalmente obrigada a visitar a cidade pelo menos uma vez na vida. “A Trilogia de Nova Iorque”, justamente, foi o primeiro Auster que li e que nunca mais poderia ser esquecido: como o simples aceitar de um telefonema feito por engano nos podia transportar para uma vida completamente alternativa. A sensação de algo extraordinário poder estar sempre a passar ao lado nosso lado, se optássemos pela outra porta, se ficássemos mais dez minutos à mesa do café, se entrássemos naquela carruagem e não na outra.

A partir dali, era tudo quanto queria ler: “Leviathan”, “A Música do Acaso”, repetiam o sentimento, até que os muito menos inspirados “Timbuktu” ou “O Caderno Vermelho” arrefecessem a paixão. Havia neste último, ainda assim, uma pequena história irresistível que haveria de me ser útil algum tempo depois: o sujeito que deixa cair uma moeda de dez cêntimos de manhã, quando ia a pagar o parquímetro e que, à noite, “a” encontra esquecida na máquina de pastilhas de um pavilhão, no intervalo de um jogo de basket.

Em 2005, numa então rara vinda a Portugal, dar-se-ia a ainda mais rara oportunidade de conhecer um herói. Auster estava em Lisboa dia e meio ou dois para um evento de promoção e as entrevistas estavam reservadas para os títulos e jornalistas principais. Mas uma crónica casualmente escrita pouco tempo antes na velhinha Capital (acerca de “A Música do Acaso”, creio) valer-me-ia uma surpresa da editora: tínhamos direito a 50 minutos com o homem, em carne e osso, numa conversa no hotel.

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Não podia começar a entrevista com uma pergunta qualquer: ia fazê-lo com uma moeda de dez cêntimos. Todavia, o autodeslumbramento com a boa ideia resultaria em negligência que resultaria em asneira. Não me preocupei em tempo útil em arranjar dez cêntimos de dólar, e tentar trocá-la numa casa de câmbios na manhã do próprio dia não resolveu a questão (não é exactamente o tipo de montante que costumam ter disponível: dez míseros cêntimos de dólar). Segui para o Altis, acompanhado da Paula e do fotógrafo, armado com dez cêntimos de euro e um livro de histórias de amor que tinha publicado pouco tempo antes. O homem surpreendeu-me por ser mais alto, mais velho e mais americano do que esperava. Começámos a gravar: dei-lhe a moeda. Perguntei: qual é a probabilidade de esta moeda estar apenas a regressar à sua mão? Ele olhou a moeda, uma face, depois outra. “Dez cêntimos de euro, ainda tão nova e limpa, eu não tenho vindo à Europa…” Devolveu-me. “Diria que é, basicamente, nula,” Um desapontamento – Auster tinha-me levado a sério. No fim, agradeceu o livro com o mesmo jeito desarmantemente honesto: “In Portuguese? I won’t be able to read it, but thank you.” Mas, uma vez desgravada, editada e impressa, a entrevista ficou boa, melhor do que parecera no momento, e sem ficar a dever nada às dos jornalistas seniores nos títulos grandes. Falava, se bem me lembro, de algo que faltava a todas as outras: o episódio cardíaco, então recente, em que julgou que ia morrer, e de como se surpreendera por sentir feliz, ir deste mundo no chão da sua cozinha, nos braços da sua mulher.

Anos mais tarde, Auster voltaria a salvar-me a vida, quando os textos iniciais compilados em “Da Mão para a Boca” trouxeram a um tempo menos feliz o conforto de saber a verdade óbvia mas que insistimos em esquecer de que até os grandes passaram dias maus. O projecto de compilação de histórias de “Pensei que o meu Pai era Deus”, “A Noite do Oráculo”. Outros guardei. Guardei sempre. Era preciso ter sempre dois ou três Auster na prateleira – “Mr. Vertigo”, “O Palácio da Lua” – para uma emergência. Para não correr o risco de, um dia, precisar e se me ter acabado. Recentemente, tinha voltado a comprar um título novo, sem sequer saber porquê: “Baumgartner”. Esperou dois ou três meses ao lado do sofá, sempre a desinquietar-me para ser lido. Mas ainda não tinha acabado duas leituras hercúleas em que me lançara. Faltavam 12 páginas para chegar a ele. 12 páginas.

Ontem, quase 20 anos passados desde o encontro em pessoa, uns 25 do contacto com o primeiro livro lido, 15 do meu romance austeriano falhado, leio a triste notícia de que o verdadeiro partiu, levado não pelo coração, mas pelo cancro. Espero que nos braços de Siri.

Termino a crónica numa pastelaria do bairro, com a ajuda de um café. 90 cêntimos, pediu o funcionário. Por uma vez, lembrei-me de não pagar com cartão e ir ao porta-moedas da carteira, agora quase nunca usado. Uma moeda de 50 cêntimos, uma de 20, duas de dez. Peguei na última e olhei-a bem antes de a deixar no balcão. Estava mais velha, muito mais suja, mas não havia dúvida: era a moeda com que tínhamos começado a entrevista em 2005.