Diz-nos Paulo Tunhas no ensaio póstumo Filosofia, editado pelo Instituto de Filosofia da Universidade do Porto: “A filosofia pode ser concebida quer como uma atividade, como uma busca de saber, quer como uma doutrina, como algo que é ensinável, algo de sistemático.” Os sistemas filosóficos resultam deste segundo entendimento, onde se procura não apenas a coerência, mas também

esgotar a totalidade do pensável, sem deixar lacunas algumas. Dito de outra maneira: de procurar construir um mundo integralmente coerente que seja habitado por tudo aquilo que podemos pensar, sem que nada lhe escape e sem que nada se encontre fora do lugar que essa coerência da totalidade lhe exige.

É esta ambição sistemática da filosofia que torna tão intrigantes aqueles filósofos que, tendo alterado aspetos fundamentais do seu pensamento, levaram a doutrina a referir-se a essas fases como se representassem autores distintos: pensemos em Heidegger I (de Ser e Tempo) e Heidegger II (da Ereignis); no primeiro Wittgenstein (o do Tractatus) e no segundo Wittgenstein (o das Investigações); ou mesmo no jovem Karl Marx (dos Manuscritos) e no Marx maduro (do Capital). Numa área tão dada à sistematicidade como a filosofia, estas alterações são vistas como estranhezas: como se o normal fosse o filósofo ter tido um acesso privilegiado à verdade num determinado momento da sua vida (preferencialmente, muito novo, como sinal da sua excelência e excecionalidade), devendo limitar-se, por isso, nos anos seguintes, a amadurecer e a explicar esse vislumbre de sabedoria.

Na vida real, pelo contrário, tendemos a desconfiar das pessoas que sempre pensaram o mesmo, que nunca mudaram de ideias, que acreditam nas mesmas coisas desde a adolescência. E provocam-nos desconfiança porque experienciamos diretamente a mudança, em nós e na vida lá fora: sabemos que mudamos (envelhecemos, há que o dizer), as condições das nossas vidas alteram-se, as nossas prioridades vão-se adaptando e as circunstâncias sociais, políticas, culturais também se modificam (e nas sociedades contemporâneas esse processo de mudança é acentuadamente acelerado). Como pensar sempre o mesmo sobre o mundo se o mundo não é o mesmo, nem nós somos os mesmos? Os versos de Walt Whitman não parecem assim uma excentricidade de poeta, mas a própria condição humana:

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Contradigo-me?
Muito bem, contradigo-me então
(Sou vasto, contenho multidões.)

O mais espantoso parece ser, então, que nos consigamos reconhecer como os mesmos apesar do tanto que mudamos – tópico a que a filosofia também se tem dedicado, pelo que o tema não é novo. Mas há uma novidade introduzida pelas sociedades livres e democráticas: na medida em que assentam (ou devem assentar) em processos de deliberação pública, elas exigem que sejamos capazes de reconhecer aquela natureza de mudança e que, por consequência, há uma diferença fundamental entre aquilo que somos e as ideias em que acreditamos.

Não se trata, pelos deuses, de fazer aqui a defesa dos cataventos, em especial dos mediáticos, e considerar que podemos mudar de ideias e posições a cada momento. Trata-se, antes, de reconhecer que as sociedades livres e democráticas exigem de nós que não nos encerremos numa autoimagem única, unindo a nossa identidade às nossas ideias. Tal acontecia nas sociedades tradicionais religiosas, que faziam coincidir a pessoa que éramos com uma identidade religiosa e social e nos legavam um conjunto de ideias, valores e opiniões que eram determinados externamente. Mas as sociedades liberais, ao promoverem um espaço de suspensão entre o que somos e as nossas crenças, possibilitaram não só o fim das guerras religiosas na Europa, como também o surgimento de um lugar de pluralismo e deliberação pública.

É nesse espaço de deliberação que acontecem as decisões ético-políticas, através do exercício da argumentação, como diz Tunhas:

Pensar sobre uma regra moral consiste em avaliar a sua justeza prática, a sua superioridade relativamente a outras regras concorrentes. Acreditar numa regra moral é um estado mental que supõe a figura epistemológica da argumentação. Não se acredita numa regra moral sem o exercício de uma argumentação (pública ou com nós mesmos, com o nosso daimon, para falar como os gregos) sobre o valor dessa regra.”

A prática da argumentação não é fácil: implica não nos envolvermos emocionalmente com os argumentos; implica reconhecer que podemos não estar certos; implica ouvir o outro, o mesmo é dizer, ouvir críticas, opiniões estranhas ou ofensivas e até, ouso dizer, piadas; implica não nos levarmos demasiado a sério. Acima de tudo, implica sermos capazes de falar sobre as nossas ideias sem considerar que essa discussão põe em causa a nossa existência.

Esta não é, provavelmente, uma faculdade natural ao homem: exige um esforço de bonomia, de frieza intelectual, de racionalidade. Mas se o processo de deliberação coletiva caracteriza as sociedades humanas (será especificamente humano?), precisamos de saber praticar a arte da argumentação. É a única forma de discutir publicamente medidas e projetos políticos e chegar a compromisso com os outros, aqueles que pensam de forma diferente. O mesmo é dizer, é a única forma de salvar a democracia.

Não nos é natural e não é fácil, pelo que exige o empenho das antigas virtudes de disciplina e hábito. Talvez seja, por isso, uma boa resolução para o novo ano. Votos de um excelente ano de 2024.