Passo boa parte do meu tempo no cantinho superior direito do território nacional. Atravesso com frequência a fronteira, que já só perdura nos mapas, para fazer compras, para jantar, para revisitar a vida onde a vida ainda não foi aniquilada. Às vezes vou a San Vitero, uma aldeia a quinze minutos de minha casa, com umas dúzias de habitantes e dois restaurantes que frequento. Nunca consegui apurar o horário destes. Chego às onze, fuso português, e sou sempre servido, por sinal com simpatia e molejas – e há fregueses que chegam a seguir a mim e beneficiam de igual tratamento. Outras vezes, no mínimo uma por mês, vou a Zamora. Faça frio ou calor, e em Zamora faz bastante frio e bastante calor, a partir da tardinha as praças estão sempre cheias de famílias e amigos e solitários a cirandar. Não são turistas: são os indígenas que trocam o lar pelo ar livre, as lojas, as cervejarias e “churrerias”, os bares que vendem tapas madrugada afora. Julgo que não vale a pena descrever Salamanca e Madrid. Em Espanha, ou pelo menos na Castela que me é familiar, subsiste qualquer coisa similar à alegria. Há quem não goste.

A ministra espanhola do Trabalho não gosta. A senhora, que se chama Yolanda Diaz, quer obrigar os restaurantes, os bares e o que calha a fecharem mais cedo. O “argumento” é o de que no resto da Europa tudo fecha cedo, e a singularidade espanhola é, cito, “uma loucura”. Loucura, parece-me, é aquilo de que padecem os que se acham no direito de impor aos outros as alucinações que lhes povoam as cabecitas. Na última emissão do nosso “podcast”, o excelso A Lengalenga do Costume, o meu amigo Tiago Dores dissertou com pertinência acerca dessa casta de pervertidos, criaturas empenhadas em oprimir os semelhantes. Os semelhantes, vírgula: não me considero da espécie de tais perturbados. Embora me ocorram imensos pensamentos inconfessáveis, nunca me ocorre proibir o que as pessoas cometem por decisão voluntária e inconsequente para terceiros. Os proprietários dos estabelecimentos querem abrir até às tantas porque têm clientes que os querem visitar até às tantas e encontram assalariados disponíveis a colaborar. Todos livres, todos adultos, circunstâncias que a referida ministra naturalmente não aprecia. Está no direito dela, que termina, ou deveria terminar, no exacto momento em que começam os direitos dos demais.

Espero, dado ser o que me sobra, que Espanha resista ao avanço das sombras. Portugal, por exemplo e por desgraça, não resistiu. Não falo, em ambos os casos, de uns quarteirões nas principais cidades em que jovens em afirmação e anciãos em negação se acotovelam para beber uns copos. Falo, nas cidades grandes e nos lugarejos, do prolongamento do quotidiano normal para depois do expediente, da possibilidade de existir além do modo funcionário de que falava o poeta. Eu raramente bebo, como pouco, não sou fanático por bares e abomino discotecas. Do que gosto é de poder usufruir das trivialidades do meio-dia à meia-noite, das vozes lá fora ainda que eu esteja em casa e, principalmente, da celebração da liberdade que essas miudezas traduzem. Não sendo a felicidade, o destrambelhamento dos horários “decentes” anda para mim muito perto.

Houve uma época em que Portugal foi assim destrambelhado. Permitam-me o paroquialismo da alusão a Matosinhos, lugar que carrega a honra de me ter visto nascer e crescer. Quando eu era criança e adolescente, tornava-se difícil arranjar mesa em qualquer dos inúmeros cafés locais, muitos dos quais paravam de atender pelas duas da manhã. As marisqueiras praticavam loucuras idênticas. Uma padaria em particular permitia que nos sentássemos no interior antes do sol nascer, ao lado de pescadores e prostitutas, a tentar engolir croissants a ferver. De Domingo a Domingo, após cada jantar e sem regresso marcado, o povo saía à rua para a maior das revoluções: caminhar, rir, discutir, conversar, enfim ser gente. Os meus avós, os meus pais, os avós e os pais de todos nós engrossavam a multidão. Essa época morreu.

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Nos últimos vinte ou trinta anos, período em que Matosinhos deixou de ser uma vila simpática, industrial e linda por troca com um dormitório horrendo, com ênfase em “horrendo” e em “dormitório”, as coisas mudaram devagar e tragicamente. Agora, às nove da noite é o deserto, agravado pelo sujeito que leva o cão à relva ou que corre sem que o persigam. Os cafés encerram às sete, o comércio às sete ou sete e meia. Os restaurantes, aliás copiosos, vão até às nove ou dez, e não abusem. As próprias tendas de fast-food, que na América chegam a funcionar sem parar inclusive em povoados que jantam às 18.30, aqui murcham cedo e limitam-se a atender automóveis. A horas indecorosas, que continuo a testemunhar, o único sinal de que uma catástrofe nuclear não varreu a humanidade são os transviados que se encostam aos guichés das escassas bombas de gasolina “abertas”. O ideal é ninguém sair, que amanhã é dia de trabalho. Como convém num dormitório, os cidadãos dormem, nem que estejam acordados. Matosinhos é uma terra triste, e o pior é percebermos que não está isolada na sua tristeza.

Portugal é um país triste, atravessado pela mágoa de, durante um pedacinho breve, para aí entre 1978 e 1994, se a memória não me trai, não o ter sido. É legítimo culpar os shoppings, os sindicatos, a televisão, a Igreja, os telemóveis, os governos, os conselhos médicos alusivos ao sono, os arquitectos, os jogos de vídeo, o que se entender. É também inútil: os espanhóis possuem as mesmas maravilhas e, por enquanto, não abdicaram de viver. Nós abdicámos, e resignámo-nos a um protocolo da conformidade, interrompido por euforias de plástico para “partilhar” no Instagram. Os portugueses não partilham nada, excepto a vocação para a derrota.

Desculpem o desabafo: é que hoje não posso escrever sobre política. Por isso escrevi sobre política.