Chegado às alturas que pelo sul dominam a venerável vila de Óbidos, paro para ver as vistas. O dia já vai claro. Em baixo, à esquerda, a cidadela fortificada e por detrás a grande várzea que se estende até ao mar. Indiscutivelmente, a paisagem fá-la a luz. Por isso a paisagem só existe entre o amanhecer e o anoitecer.

Vista dali, do alto, Óbidos parece um daqueles castelos de cartão para crianças. A torre de menagem destacando-se, a muralha apertando a vila como um cinto de pedra, com as casinhas brancas comprimidas, espremidas, esguichando chaminés dos telhados encarnados ou castanhos. Sobressaem também as torres das igrejas, três ou quatro, como educadoras num Kindergarten de crianças em alvenaria, os bibes brancos de cal com costuras e golas amarelas ou azuis.  Igrejas e capelas fruto de doações pias, antigos investimentos de capital no Paraíso.

Os galos cantam nas quintas. E aos poucos a paisagem física em meu redor converte-se em paisagem social. Os vales semi-cultivados e as matas onde se esconde lixo espelham um desinteresse de décadas pela agricultura, a parente pobre da nossa economia. Por todo o lado, as modestas casas camponesas irmanam-se com armazéns abarracados de porta em zinco e fim indeterminado, ruínas em desabamento e algumas moradias de primeiro andar com balaustradas reluzentes dignas do Cazaquistão de Borat. O desalinho e estranho sossego destas aldeias falam-me sobretudo de falta de propósito. De comunidades sem destino. Desaproveitadas. Alheadas da grande festa da globalização e dos ritmos da partitura do nosso tempo – um tempo impacientemente produtivo.

Mas para lá da paisagem física e da paisagem social, descubro uma paisagem mística. Profundamente histórica, moldada por rainhas, pelos monges de Cister e sobretudo por tenazes gerações de plantadores. Nos vales húmidos e nas colinas suaves pressente-se ainda a alma pacífica mas resiliente e prática do camponês do Oeste.

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Este Oeste tão mal conhecido é de facto uma terra antiga, antiquíssima. Tão antiga que foi povoada por dinossauros, cujos cemitérios são visíveis praticamente em todas as falésias encaixadas entre a Ericeira e a Nazaré. Quase tão velhas como os dinossauros são as lendas, como aquela de Dom Fuas Roupinho salvo in extremis por Nossa Senhora de cair das alturas estrepitosas do Sítio.

Sim, esta é uma zona de brumas, misteriosa e espectral como talvez nenhuma outra em Portugal. Mesmo no verão as praias são problemáticas, cheias de neblinas praticamente flamengas. É aqui que o mar tem os seus maiores abismos e as grandes vagas. Algumas povoações ostentam nomes evocativos de antigos monstros marinhos e da sua aventurosa caça, como o Baleal e a Atouguia da Baleia. Os mosteiros de Alcobaça e da Batalha são repositórios de misticismo e profecia. E em certas aldeias ainda há tocadores de gaitas de foles.

Procuro conforto na ideia de que o futuro não está necessariamente nos sítios onde acontecem muitas coisas. Está sobretudo em lugares onde tudo pode vir a acontecer. Há 30 anos, a Irlanda também parecia adormecida.