Há cerca de uma semana, cá em casa, inscrevemo-nos na plataforma criada pelo Governo Português para servir de ponte entre quem quer ajudar refugiados da guerra na Ucrânia e quem precisa de ser ajudado. Oferecíamos, se necessário, parte da nossa casa e a nossa mesa para receber uma pequena família ucraniana, temporariamente.

Honestamente, desejava que tal não fosse necessário e que as instituições governamentais e de solidariedade o conseguissem fazer sem a ajuda de uma família da classe média, aquela classe que paga quase todos os impostos que tudo sustentam no nosso pobre Estado. Mas, se não tenho já grande condição para pegar numa arma e defender os valores da Europa ocidental e ainda decente, é o que posso fazer: dar o que tenho.

Uma semana depois, não recebemos qualquer comunicação da plataforma do Estado, após as duas inscrições que já fizemos. Nem um SMS nem um email a dizer algo assim: “Registamos a sua oferta. Se for necessário, contactá-lo-emos. O Estado Português agradece a sua generosidade”.

Vale a pena, então, fazer a história desta plataforma.

Com o começo da guerra, como sempre, foram sociedade civil e autarquias a responder primeiro e melhor às necessidades, a organizar o impulso solidário português e a programar a ajuda. Foram criados programas de solidariedade e missões para resgatar refugiados junto às fronteiras da Polónia e da Roménia, para os transportar e receber em Portugal. Um cidadão, ajudado por outros, criou então uma plataforma digital de encontro entre os que precisam de ajuda e os que querem ajudar e as autarquias organizaram rapidamente “excursões” de autocarros, por vezes apoiadas por carrinhas particulares, para assegurar o transporte assistido e a receção de refugiados. E assim estava criada uma plataforma digital que recebia oferta de transporte, alojamento, emprego e que oferecia estes gestos solidários aos ucranianos.

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Enquanto isso, o Estado Português exibia a sua habitual inércia e incapacidade para antecipar, reagir e encontrar soluções inovadoras ou às vezes até óbvias, dispensando-se de colocar ao serviço do que interessa a enorme fileira de assessores, adjuntos e chefes de gabinete que tornam ainda mais inúteis secretários de estado e ministros. E, assim, numa primeira fase, o Estado ficou-se pelo papel, com duas ou três regras facilitadoras ditadas em Conselho de Ministros, segundo as instruções da Comissão Europeia, também ela habitualmente lenta a reagir a tudo.

Mas depois, quando a solidariedade privada e autárquica já estava no terreno, veio a habitual voracidade político-partidária, viciada no “soundbite”, que se respalda no Estado Português “Socialista”. Não fazendo nada que se veja, tem inveja de quem faz e sempre procura capitalizar como suas as ideias dos outros e criar uma “narrativa” populista, que depois passa em formato cartilha aos seus mais improváveis porta-vozes, feitos comentadores televisivos de domingo à noite.

E então, a tal plataforma que já existia, criada pela sociedade civil, foi aparentemente afogada por uma nova plataforma do Estado, que possui o conveniente logotipo da “República”. Pago o design e feitos os respetivos ajustes diretos para pagar a “inovadora” plataforma, a propaganda anuncia a “iniciativa” do Governo que, assim, se sobrepõe a tudo. Pelo menos na retórica.

Nem estaria mal de todo, se funcionasse. Se servisse efetivamente para mais do que o anúncio e para mais do tolher a iniciativa privada, neste caso, solidária. Mas funciona?

Eu não sei nada acerca das pessoas que vi, nos primeiros dias, desenvolver a ideia da plataforma. Procurando no Google já não encontro rasto desse primeiro portal que, no início, serviu de ponto de encontro entre a ajuda oferecida e a procurada, enquanto os membros do Governo se entretinham a dizer o costume: “não há nenhum motivo de preocupação para Portugal”. O que sei é que a plataforma criada pelos boys do Terreiro do Paço não está sequer programada para devolver um “obrigado”, se é que existe algum humano ou ação por detrás da “home-page”.

Não deveria estar surpreendido. Foi assim durante toda a pandemia. A inércia e incompetência do Governo, em particular as instaladas nos Ministérios da Saúde e da Solidariedade Social, foram incapazes de antecipar o que quer que fosse, mandaram a senhora Graça sossegar os portugueses “que o vírus nunca cá chegaria”, numa altura em que a OMS já tinha alertado o planeta. Foram, depois, resistentes à tomada das primeiras medidas, nomeadamente de confinamento e até do uso de máscara. E finalmente, DGS e Ministérios em causa foram sempre os últimos responder, muito depois de autarquias e privados (empresas, indivíduos) darem os primeiros passos, tomarem as medidas necessárias e, muitas vezes urgentes. O Governo, esse, passava as horas a preparar a conferência de imprensa do dia onde, ora negava a realidade, ora desculpava a incapacidade, ora tentava fazer suas as ideias e iniciativas dos outros, quase sempre mentindo. Mentindo sobre a realidade, sobre o que fazia e não fazia e mentindo sobre as soluções.

E foram as autarquias, as instituições de solidariedade e as empresas que ditaram os autoconfinamentos, o teletrabalho; o uso de máscaras; a criação de respostas hospitalares complementares; a importação, produção e distribuição de EPI’s; a instalação de ventiladores e a montagem de sistemas de testagem. O Governo e as suas satélites, como a DGS, limitaram-se à propaganda difundida no Telejornal e a puxar o lustro às suas próprias condecorações e ao festim das exceções e Ligas dos Campeões. E nem a distribuição de doentes pelas camas disponíveis nos seus próprios hospitais foi capaz de organizar.

O pior de tudo é que a “pata” do Governo ou do Estado ou do Partido Socialista (nunca sabemos onde começam uns e terminam outros) esteve sempre pronta para se pôr em cima do que funcionava e não era seu. Que era quase tudo.

Quando nos Municípios já se promoviam testes maciços a lares, como aconteceu no Porto de forma pioneira numa parceria entre a Câmara liderada por Rui Moreira e os hospitais e centros de saúde que possuíam gestão local, veio então o Governo mandar o seu porta-voz de domingo à noite na SIC anunciar que iria haver testes maciços nos lares. Anunciando essa “ideia fantástica” do Ministério, “nunca vista” e, logo, tão elogiada pelo próprio. Os testes ministeriais seriam feitos pela Cruz Vermelha, pois claro, com kits “made in Portugal”, construídos na Academia nacional. E começariam na semana seguinte, a Sul.

E o país que os fazia há muito, sem precisar de corta-fitas, anúncios televisivos e créditos políticos, graças à solidariedade e esforço de autarquias, dos particulares e muitas vezes de voluntários, penava, entretanto, por uma zaragatoa que o Estado não era capaz de fornecer, por uma máscara que a Dr. Graça dizia ser prejudicial. Creio que o que aqui afirmo pode ser confirmado por qualquer dos utentes, dos funcionários, dos responsáveis pelos lares ou hospitais do Porto.

Já os testes “made in Portugal”, anunciados pelo porta-voz de domingo à noite, não consta que tenham sido alguma vez feitos em algum lar. É certo que mais tarde – tarde demais – vieram a ser feitos alguns testes em lares por iniciativa do Governo, mas quase sempre por reação a desgraças humanas que aconteceram pelo país e mataram mais de 20 mil pessoas, muitas que não precisavam de ter morrido.

Nessa altura, o Estado entretinha-se a exercer poder, muitas vezes prepotente, e a dar benesses a alguns, porque podia, como aconteceu de forma voluntarista, mas irresponsavelmente criminosa no Natal de 2020.

E, claro, à medida que governava mal, mantinha sempre a sua “pata” disponível para esmagar quem fazia bem. Lembram-se das elevadas faturas e coimas enviadas pelo Estado a quem tomou a iniciativa de criar respostas hospitalares de campanha ou emergência, que por serem de emergência não estavam, naturalmente, licenciadas? Respostas que o Estado não criou, não organizou e não coordenou, por estar entretido a construir “narrativas” para conferências de imprensa que, além da propaganda, provocavam confusão e desconfiança na opinião pública.

O Governo não antecipou a pandemia, como não antecipou a guerra. Não respondeu prontamente à pandemia como não o está a fazer relativamente à guerra. Não comunicou de forma eficaz e com verdade na pandemia, como não está a fazê-lo agora relativamente aos efeitos que vamos, fatalmente, ter de enfrentar. Mas há uma tarefa que nunca lhes escapa: à mínima movimentação ou iniciativa da sociedade civil, do setor privado ou das autarquias, logo imagina como criar uma “fake-news”, uma inauguração, um avião num aeroporto com direito a selfie ou um “soundbite” que possa fingir que é do Estado aquilo que não fez, tomando como sua a ideia de outros, mas – e isso é que importa – tornando ineficaz o que está a funcionar.

Claro que os autocarros enviados por Câmaras Municipais ou as carrinhas conduzidas por pequenos empresários, que foram à Polónia e à Roménia buscar de milhares de refugiados, não são tão sexys como um avião onde o Presidente da República se permite entrar antes mesmo que os massacrados refugiados possam sair. Essa iniciativa privada, autárquica, solidária não viaja na TAP, mas tem tido pelo menos a vantagem de não se sujeitar à falta de vergonha da extensa comitiva presidencial e governamental que, de iPhone em punho à porta do avião, trata ucranianos particularmente frágeis como aves coloridas num jardim zoológico.

Eu, como um mero e modesto cidadão, como muitos milhares de outros portugueses, só quero ajudar, com o que tenho e não é muito. Não tenho logotipo para exibir em meio web. Não espero medalhas nem notícia. Mas exijo competência e decência. Não me importando que o Governo brilhe no comentário de domingo, segunda ou quarta à noite, com a simpatia de quem o ajudou a dar a “novidade”, gostaria era que, no meio de toda esta mesquinhez na procura do protagonismo político de base ideológica (se não é do Estado tem de passar a ser), houvesse pelo menos eficácia e as medidas anunciadas e propagandeadas ajudassem quem precisa.

Não foi assim durante a pandemia. Receio que não esteja a ser com a guerra. E espero que, realmente, a plataforma digital com o logotipo da República, tenha pelo menos a decência de responder automaticamente: “obrigado”.