Regresso à utopia dos bens comuns colaborativos (BCC), tal como foi exposta pelo ensaísta americano Jeremy Rifkin no livro A sociedade do custo marginal zero (edição original, 2014, pp 155-193). A economia BCC faz parte do capitalismo popular e cognitivo da sociedade do conhecimento, mas é, por enquanto, mais uma miragem, pois está muito longe de ter atingido a velocidade de cruzeiro. O que temos neste momento é o gigantismo capitalista dos grandes conglomerados tecnológicos GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber) e a corrida desenfreada de pequenas empresas start-up que buscam chegar o mais rapidamente à condição de unicórnios (valorização bolsista de mil milhões de dólares) para serem vendidas e fazerem fortuna rapidamente. Acrescente-se, ainda, o logro dos chamados mercados biface, em que é feito um uso abusivo dos nossos dados pessoais, convertidos numa espécie de economia extrativista posta a render por aqueles conglomerados que, além disso, usam os mestres-algoritmos para condicionar e influenciar quotidianamente os nossos comportamentos.

O grande universo da economia BCC – autorregulação da sociedade civil, plataformas digitais distribuídas, o regresso dos bens comuns, uma nova aprendizagem social, a coprodução e cogestão de serviços públicos, serviços de rede e proximidade, um universo de prestadores, cuidadores e curadores, uma nova divisão do trabalho mais flexível, mais e melhor financiamento participativo – está em plena formação, de forma muito diversificada, difusa e com inúmeras variantes. De um ponto de vista mais analítico e estrutural, vejamos a tradução que esta utopia da sociedade colaborativa pode assumir no futuro próximo.

Em primeiro lugar, a economia dos bens e serviços comuns colaborativos tem uma filosofia própria. Eis algumas das propriedades básicas dessa filosofia: o regresso aos valores de uso, à utilidade coletiva e ao governo das regras (1), a prioridade ao acesso e ao serviço em vez da propriedade e da posse (2), a assunção dos custos de transação face aos grandes intermediários comerciais (3), a apologia da proximidade, os circuitos curtos, a liberdade de auto-organização (4), a promoção dos consumos responsáveis e partilhados e o combate ao desperdício (5), a apologia da sustentabilidade e dos bens de mérito e o seu papel na socialização das relações (6), a plasticidade e abertura aos novos modelos de negócio colaborativo (7), o financiamento participativo e a economia das plataformas colaborativas (8).

Em segundo lugar, a sociedade e a economia BCC guardam uma relação particular com determinadas áreas instrumentais que estão na base daquelas características, a saber, o património e a paisagem (1), a ciência e a tecnologia (2), a arte e a cultura (3), o ambiente e a ruralidade (4), a economia da comunhão e da solidariedade (5). Estas áreas instrumentais, e o modo como elas interagem e convergem, formam o núcleo duro da sociedade e da economia BCC, sobretudo, em projetos inovadores de base regional onde se faz a gestão integrada dos diversos estímulos e incentivos disponíveis.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em terceiro lugar, a interação da sociedade e economia BCC com a economia do setor público convencional. Já sabemos que a economia capitalista privatizou os benefícios e socializou os prejuízos dos seus efeitos externos remetendo estes para a intervenção pública através do orçamento de Estado. Agora, com a transição digital, há muito espaço para o crescimento dos bens e serviços colaborativos coproduzidos em redes e plataformas descentralizadas e distribuídas e, desta vez, fica por saber qual é a parcela que é interiorizada e socializada pelo universo da economia BCC no conjunto dos efeitos externos negativos que o Estado socializou por via do contribuinte e burocratizou por via da administração pública. Esta é, talvez, a interrogação mais pertinente que podemos fazer nesta altura, ou seja, qual a natureza da relação, mais virtuosa ou mais viciosa, entre a administração pública e o setor dos BCC, pois estou seguro de que o universo colaborativo crescerá imparavelmente.

Em quarto lugar, tudo leva a crer que a transição tecno-digital, associada à inteligência artificial, nos conduzirá a uma profunda transformação estrutural do emprego e a uma sociedade de regimes socio-laborais muito diversos e flexíveis. Numa primeira fase, nas margens do sistema instituído e sob a forma de uma mobilidade experimental e algo caótica onde o nomadismo digital também entra. Numa segunda fase, de forma mais organizada, à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos, empresariais e sociais assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada e colaborativa.

Em quinto lugar, a ética do cuidado e a sociedade sénior. Nenhum de nós deseja o pior para o último terço da sua vida. A maioria dos lares da 3ª idade, tal como os conhecemos, corresponde a uma oferta público-privada que poderíamos designar de industrialização e confinamento da velhice. Não tem de ser assim. Entre uma oferta privada, cara e inacessível à maioria, e uma oferta pública e social com graves limitações financeiras e humanas, existem, felizmente, muitas soluções possíveis de natureza cooperativa, mutualista, comunitária e associativa que os projetos de inovação social e comunitária podem e devem promover. As misericórdias, as IPSS, as câmaras municipais, os serviços de saúde e segurança social, as instituições de ensino superior, podem e devem constituir-se em rede social e plataforma colaborativa para empreender os novos projetos de aldeamentos seniores, cohousing e nursing homes, programas de envelhecimento ativo e voluntariado social e novas fórmulas de engenharia social e financeira que, de algum modo, nos permitam escapar aos constrangimentos crescentes do Estado social. Em face do declínio demográfico e envelhecimento da população, já não se trata aqui de utopia, mas de pôr em prática uma genuína economia da comunhão e da solidariedade.

De um ponto de vista estrutural, a utopia da sociedade colaborativa só estará completa se formos capazes de desenhar para os territórios mais desfavorecidos projetos integrados e inovadores de inteligência coletiva territorial que associem as áreas do núcleo duro da economia BCC anteriormente referidas. Eis alguns exemplos:

  • A gestão conjunta e colaborativa dos parques e áreas industriais no que diz respeito aos custos de contexto e externalidades das unidades empresariais que os integram,
  • A gestão cooperativa de propriedades rústicas sob a forma de banco de solos e a gestão agrupada de zonas de intervenção florestal tendo em vista a redução do risco de incêndio,
  • A gestão conjunta e colaborativa de consórcios empresariais, tendo em vista a formação de clusters industriais, arranjos produtivos locais e marcas coletivas,
  • A gestão comum e colaborativa de áreas integradas para efeitos de ordenamento do mosaico paisagístico, da biodiversidade e provisão de serviços de ecossistema,
  • A gestão comum e colaborativa de áreas de montado, áreas de paisagem protegida, amenidades rurais e serviços de extensão rural,
  • A gestão comum e colaborativa de propriedades, quintas e terroirs de fins múltiplos, onde se inclui não apenas o turismo ecológico, mas, também, as quintas pedagógicas, os condomínios rurais, os aldeamentos seniores e as explorações de agricultura alternativa.

Em todos os casos, estamos a gerir em comum e colaborativamente, através de plataformas de base local e regional, os estímulos e incentivos disponibilizados pelas políticas públicas e, em todos os casos, estamos a usar os sinais distintivos e a marca do território para transferir o valor criado nesses projetos para os principais veículos desses territórios, que são os produtos IGP e DOC, os mercados de nicho, as cadeias de valor e as fileiras de exportação, os percursos de natureza e a cultura local e regional.

Notas Finais

A prova real desta utopia da sociedade dos bens comuns colaborativos é promover a desindustrialização social e institucional e reduzir substancialmente as burocracias sociais que vêm do século passado, sem, no entanto, perder de vista algumas armadilhas que uma desinstitucionalização precipitada pode arrastar. Neste contexto, a grande expetativa em redor da economia BCC é o acréscimo de eficácia e eficiência introduzido pela transformação digital nas áreas habitualmente institucionalizadas e burocratizadas, mas, também, a devolução da responsabilidade social aos cidadãos e à sociedade civil.

De resto, no horizonte deste movimento de longo alcance de coprodução, cogestão e responsabilidade partilhada os sinais de desorçamentação já aí estão. O Estado Social, por razões de dívida e sustentabilidade financeira, será tentado a reduzir cada vez mais a despesa estrutural e a substituir funcionários públicos e a oferta pública pela coprodução de serviços e por serviços em regime de outsourcing. A economia social e solidária (IPSS e ONG) seguirá o mesmo caminho e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades de cuidadores locais do universo colaborativo, por exemplo, o cohousing e as nursing homes. O mesmo se aplica aos bens públicos locais (veja-se a polémica atual sobre a transferência de competências para as câmaras municipais) e à grande área das atividades culturais e criativas para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime intermitente e de freelance. E, de uma maneira geral, a economia dos bens comuns colaborativos chegará também, com uma geografia muito variável, ao universo das redes e plataformas em formatos de engenharia colaborativa e financeira muito variados, mas envolvendo quase sempre uma redução da despesa pública estrutural e um aumento do financiamento participativo dos parceiros envolvidos. Utopia, mas não tanto.