Não quero ser alarmista ou apocalítico, quero apenas racionalizar alguns factos maiores do nosso tempo através de um pequeno exercício de prospetiva geopolítica. Estamos em 2023, vivemos uma década de grandes transições e eventos extraordinários, é impossível não recordar a Grande Depressão de 1929 que abriu o caminho ao período mais sombrio da história europeia e universal do século XX.

O exercício prospetivo hoje

Antes de alinhar os factos mais relevantes da nossa década, vale a pena fazer uma pequena incursão pela disciplina da prospetiva para saber até que ponto ela é capaz de dar conta do tempo que corre à nossa frente. A prospetiva é, digamos, uma teoria do tempo social na perspetiva das relações que a sociedade mantém com o futuro e de como este é antecipado, decidido e configurado. A prospetiva, hoje, está algures entre a projeção do presente e a antecipação do futuro, entre o diagnóstico e o prognóstico, porém, a principal tarefa da prospetiva não é tanto extrapolar tendências ou acertar no alvo, é mais expandir campos de possibilidades e múltiplos futuros.

No plano mais analítico, conhecer o futuro é, também, uma teoria histórica conhecida que começa nos oráculos e profecias, passa pela superstição e bruxaria, pela planificação e previsão e vem desembocar nos métodos da prospetiva. A prospetiva é, ainda, uma corrida contra o tempo, uma guerra acerca do tempo e das velocidades, onde o tempo domina o espaço e onde, por isso mesmo, o território é a principal vítima.

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Assim, e nas condições atuais de extrema contingência, não surpreende que muitas decisões políticas sejam quase irrelevantes. A decisão política tornou-se modesta, vivemos, por isso, o tempo da prospetiva incremental em face do risco sistémico e interdependente, dos efeitos colaterais, da ingovernabilidade política e do radicalismo político-partidário. Perante uma contingência tão elevada, o exercício prospetivo perde consistência e eficácia. Vejamos algumas características da prospetiva atual:

  • A prospetiva é um campo paradoxal, uma espécie de campo minado, pois estão lá todos os nossos receios e todas as nossas esperanças;
  • O drama da prospetiva é que nada é pensado para durar, tudo é pensado para ser consumido; por isso, a prospetiva, hoje, vai da configuração para a adaptação, da ousadia para a prudência, da retórica da previsão para as tarefas da gestão e monitorização;
  • Face à incerteza do futuro, a política é uma atividade de responsabilidade limitada, ninguém está muito interessado em fazer esta ligação ao futuro responsabilizando-se por isso, ou seja, face à contingência e ao risco a política é irresponsável e inimputável;
  • A prospetiva hoje é mais um aparato que um pensamento, ou seja, sistemas de advertência e prevenção, dispositivos de autorregulação e socialização de prejuízos;
  • A prospetiva foi institucionalizada por causa do risco e das suas consequências não-intencionais e indesejáveis, assim, por causa dessa institucionalização vivemos todos, de certa forma, uma espécie de fadiga ou melancolia institucional;
  • A prospetiva tem um lado oculto e clandestino, os políticos e as suas clientelas são os mestres deste jogo bastante viciado de socialização dos prejuízos não-intencionais ou indesejáveis ou, dito de outra forma, a corrupção está, de algum modo, protegida nos termos de uma teoria geral da irresponsabilidade ou inimputabilidade políticas;
  • A prospetiva está reduzida a decisões incrementais, a contingência e a complexidade da ordem política produzem uma imensa necessidade de decisão incremental; a prospetiva fica enleada num labirinto de processos, procedimentos e regulamentos;

Um segundo aspeto muito relevante desta problemática diz respeito às conexões entre a prospetiva e a política pública. Vejamos algumas dessas conexões:

  • Face aos riscos globais, sistémicos e interdependentes, se a prospetiva não for capaz de estabilizar minimamente as expectativas dos agentes políticos principais estes vão desinteressar-se dos seus cenários e recomendações;
  • A prospetiva é multiescalar e multiníveis: a grande prospetiva deveria informar a polity e a doutrina das políticas públicas, a meso-prospetiva inscrever essa doutrina no quadro nacional da policy framewor e, por último, a microprospetiva dar indicações úteis para a politics dos agentes políticos, públicos e privados;
  • Os políticos suspeitam da prospetiva, por isso, tentam instrumentalizá-la para benefício próprio; por uma espécie de efeito redução entregam às instituições a função de regulação dos riscos principais, ou seja, a regulação institucional reduz a macro prospetiva, a hétero-regulação reduz a meso-prospetiva e a autorregulação reduz a micro prospetiva;
  • A prospetiva torna-se modesta e burocrática: mecanismos de alerta e prevenção, burocracias de observação, controlo e monitorização, sistemas de avaliação ex ante, on going e ex post, sistemas de garantias e socialização de prejuízos;
  • A prospetiva nas mãos de uma burocracia reguladora perde a graça, a imaginação, a inteligência, a inventiva, ou seja, perde a ousadia e a pertinência; substituir o problem-solving pelo problem-saving através da prospetiva torna-se quase impossível e, em boa medida, a prospetiva transforma-se em perspetiva.

O alinhamento dos factos geopolíticos mais relevantes

Feita esta breve incursão pela prospetiva, chegamos a 2023. Pensemos por um momento na confluência dos factos geopolíticos mais relevantes do nosso tempo cuja eclosão e explosão poderão muito bem acontecer até ao final desta década:

  • Um novo regime climático, o Antropoceno, tem impactos devastadores sobre todos os países com consequências disruptivas graves sobre a sua economia e bem-estar,
  • A transição energética e a redução das dependências comerciais e geopolítica da energia fóssil introduzem perturbações graves nas cadeias logísticas de abastecimento globais,
  • A revolução tecnológica e digital e a segurança cibernética que ela exige introduzem assimetrias profundas entre países e agravam as desigualdades económicas e sociais,
  • A automação e a inteligência artificial geram uma profunda erosão nos mercados de trabalho e uma forte corrosão na coesão social das nações e dos povos,
  • As duas guerras em curso, na Ucrânia e no Médio Oriente, ameaçam seriamente a segurança geopolítica e alteram substancialmente as prioridades de investimento e desenvolvimento da economia global,
  • A crise profunda das instituições multilaterais do pós-guerra e os esforços para criar um mundo mais multipolar baseado em regras novas é uma fonte de atrito permanente com graves consequências sobre a ajuda e a cooperação internacionais,
  • O regresso às áreas de influência, a instrumentalização dos países ajudados (a doutrina dos proxis), a utilização da guerra cibernética, os fatores de atrito conduzidos por grupos de milícias e mercenários, irão não apenas desestabilizar muitas zonas do mundo como congelar muitas guerras localizadas em ordem a salvaguardar os atores principais que estão na retaguarda geopolítica dessas áreas de influência em formação.

Uma das consequências mais graves de todos estes eventos geopolíticos é o fluxo crescente de refugiados do clima, da guerra e da fome que, em conjunto com o declínio demográfico do ocidente, vai explodir e perturbar gravemente a estabilidade social das sociedades ocidentais. Outra consequência muito perturbadora de todos estes eventos é a fissura aberta na estrutura do capital social das sociedades ocidentais. A liberdade, a confiança, a solidariedade e a cooperação são fortemente abaladas, os regimes democráticos são postos em causa e ameaçados enquanto cresce o populismo, a autocracia e a ameaça da besta fascista.

Notas finais

Estamos claramente na fase pós-estruturalista da geopolítica europeia e mundial e muitos atores internacionais têm a ambição de se tornar autorreferenciais. Por isso, também, nunca o futuro foi tão enigmático, misterioso e perigoso. Perante a acumulação de tantos eventos extraordinários e efeitos de contaminação não-intencionais a eclosão de outros tantos efeitos paradoxais é inevitável: a velocidade aproxima o futuro do presente, os comportamentos de risco e as colisões aumentam vertiginosamente, o futuro é capturado e instrumentalizado pelo ciclo político-eleitoral, o tempo curto da prospetiva vertical rouba um tempo precioso à prospetiva horizontal e à negociação informal, por último, para os jovens, o futuro é do foro individual e não da competência política, o futuro privatiza-se, pluraliza-se e fragmenta-se, os jovens mostram interesse pela coisa comum, mas não de forma coletiva.

Hoje, perante uma contingência tão elevada e recorrente, a prospetiva já não arrisca os grandes cenários para não criar um problema desnecessariamente. Prefere, antes, minimizar o risco sistémico e os seus efeitos colaterais, por um lado, e tentar alargar o campo das possibilidades, por outro. Perante uma acumulação tão inusitada de eventos extraordinários, só falta mesmo a cereja em cima do bolo, a saber, um incidente grave no Indico-pacifico, a terceira guerra desta década, tendo a China como principal protagonista. O que fazer nessa circunstância, ou antes, o que fazer para que tal não aconteça?

Daqui até 2029 temos, portanto, de parar duas guerras e impedir uma terceira. Nada nos diz que vai eclodir em 2029 uma Grande Estagflação ou uma Grande Depressão como em 1929, mas, também, nunca tantas condições adversas estiveram tão iminentes para provocar uma grande disrupção porventura mais grave do que aquela que irrompeu em 1929 e nos anos seguintes. Face à deceção da grande política restam-nos as coisas simples, o bom senso, o diálogo, a cooperação, a discrição e a modéstia da diplomacia.