Se o propósito do Presidente da República na primeira vez que declarou o estado de emergência foi, como referido no seu primeiro decreto, definir um “quadro de segurança e certeza jurídicas”, é difícil dizer hoje que estamos nesse quadro. A declaração de emergência, após duas renovações, expirou a 2 de maio. A 30 de abril, o Governo declarou, através de Resolução do Conselho de Ministros, a situação de calamidade em todo o território nacional, incorporando muitas medidas que figuravam nos anteriores decretos governamentais de regulamentação da declaração de emergência – desde logo, o confinamento obrigatório para alguns cidadãos –, e fundamentando outras medidas proibitivas na Lei de Bases de Proteção Civil e na Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública. No mesmo dia, o Governo aprovou por decreto simples limitações especiais à circulação entre 1 e 3 de maio, ao abrigo tanto do estado de emergência como da situação de calamidade. A 1 de maio, o Governo aprovou por decreto-lei as medidas excecionais relativas à situação epidemiológica, replicando as medidas anteriores que haviam cessado os seus efeitos com a caducidade da declaração de emergência, acompanhadas de outras medidas também excecionais, como o uso obrigatório de máscaras ou viseiras ou medições de temperatura corporal a trabalhadores.

Entretanto, várias vozes pronunciaram-se nos últimos dias contra a aprovação pelo Governo, fora dos canais legislativos competentes, de um tão amplo conjunto de afetações e interferências nos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. No último sábado e aqui no Observador, o Prof. Pedro Gonçalves veio sinalizar que as medidas inseridas no plano de desconfinamento emanariam de um  “direito ordinário da emergência”, baseado num conjunto de normas dispersas e de conteúdo jurídico diverso no âmbito da Lei de Bases da Saúde, da Lei de Bases de Proteção de Civil ou da Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Público, entre outras, que definiriam “os termos de decretamento de um “estado de emergência administrativa” (que se pode contrapor ao “estado de emergência constitucional”). No seu entender, esse estado de emergência administrativa permitiria até “sair da emergência constitucional, definida e balizada por um direito de exceção, para uma emergência administrativa, definida por um direito ordinário (produzido segundo os canais normais de produção do direito)”.

Ora, admitindo-se que existe hoje um direito administrativo regulador de poderes de emergência da Administração que escapam ao conceito de estado de necessidade administrativo, já é mais discutível, a meu ver, que se deva falar em “estado de emergência administrativo” contraposto ao “estado de emergência constitucional”, parecendo sugerir-se por essa via que a emergência administrativa, por ser meramente administrativa e por se basear “num direito ordinário”, seria afinal mais branda e proporcional para a segunda fase de combate à pandemia.

Do meu ponto de vista, e pese embora os objetivos compreensíveis de retirar as medidas de emergência do “dramatismo” constitucional, esta pode até ser uma tese perigosa, por razões que apresentarei aqui sumariamente. Primeiro, os poderes de emergência administrativa não podem ser vistos apenas como um direito ordinário especial para a situação de emergência, mas integram um segundo direito extraordinário surgido na esfera infraconstitucional. Uma vez que as cláusulas normativas do direito de emergência não podem deixar de ser gerais na sua previsão e alcance, admite-se que a Administração possa modelar o conteúdo das medidas a adotar com grande discricionariedade optativa e criativa. Não será exagerado dizer que a emergência poderá ficar, agora sim, nas mãos do poder administrativo.

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Segundo, aceitando-se que as leis especiais do direito administrativo de emergência podem habilitar a aplicação de restrições ou condicionamentos de direitos individuais, tais poderes de emergência só podem estar afetos às “missões” circunscritas de proteção administrativa decorrentes daquelas leis. Por essa razão, permitindo-se na Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública a adoção de medidas de “restrição, a suspensão ou o encerramento de actividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infecção ou contaminação”, nunca esta disposição poderá servir de base legal para a imposição da mesma medida à generalidade dos cidadãos, uma vez que a referência do “direito ordinário” se refere apenas às pessoas não doentes que sejam suspeitas de terem contraído a doença, além de que é essa a única solução compatível com a “missão” administrativa de vigilância em saúde pública. Não obstante, note-se que foi também nesta disposição que o Governo baseou as limitações de circulação que vigoraram entre 1 e 3 de março.

Dir-se-á, então, que se torna possível modificar as leis gerais do direito de emergência em vigor, por exemplo em matéria de proteção civil ou de saúde pública, que já autorizam a adoção de poderes de emergência, com o objetivo de legitimar necessidades superiores de intervenção administrativa gravosa sobre os cidadãos. Dessa forma, poderá até ser justificado que, a pedido da Administração, o legislador venha reforçar o direito especial aplicável à emergência: a situação de emergência concreta viria a agravar para o futuro o direito ordinário de emergência em vigor. O estado de emergência administrativo poderia o que não pode o estado de emergência constitucional.

Sucede que foi em grande medida para evitar este perigo em que medidas excecionais são convoladas num direito reforçado de emergência que o legislador constitucional optou por constitucionalizar o estado de emergência, sujeitando-o a limites apertados decorrentes da separação entre a situação de exceção e o estado de normalidade constitucional e procurando evitar, em particular, aquilo a que o jurista alemão Bockenforde chamou de “legislativização” da emergência, isto é, a incorporação das medidas de emergência num direito legislado de emergência. O “estado de emergência administrativo” transformar-se-ia, afinal, num estado de emergência permanente para os cidadãos, por serem permanentes as ameaças que o mesmo visa debelar.

O estado de emergência permanente é uma ameaça sobre as nossas sociedades. Apenas não será assim se for aplicada, neste caso, uma alternativa mais cautelosa para evitar este risco de “legislativização” e normalização da emergência, ficando o legislador competente autorizado a aprovar normas especiais de emergência, mas apenas ad-hoc, circunscritas e temporárias, que não deveriam em caso algum ficar a vigorar para o futuro.

Por fim, não será igualmente inquietante que um tão amplo “estado de emergência administrativo”, relativo a uma situação epidemiológica e de saúde pública muito complexa, possa ser decretado pelo Governo sem qualquer legitimação pública da parte de instituições científicas especializadas que permitam sustentar e enquadrar a decisão? No artigo 18.º da citada Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública afirma-se que, nas situações de calamidade pública e “nos casos em que a gravidade o justifique e tendo em conta os mecanismos preventivos e de reação previstos na Lei de Bases de Proteção Civil, o Governo apresenta, após proposta do CNSP, baseada em relatório da CCE, ao Presidente da República, documento com vista à declaração do estado de emergência, por calamidade pública, nos termos da Constituição”. Se, por motivos desconhecidos, isso não ocorreu para os efeitos da declaração do estado de emergência constitucional, não deveria ser agora uma condição indispensável na passagem para fase de emergência administrativa? De outro modo, num contexto de elevado risco social e incerteza cognitiva, o Governo ficará erigido em autoridade máxima do direito administrativo de emergência, sem nenhum apoio técnico-especializado para as suas decisões. Isto quando, nos termos do direito de emergência em saúde pública, estão definidos órgãos competentes e específicos para situações de epidemia: a Comissão Coordenadora de Vigilância Epidemiológica e a Comissão Coordenadora da Emergência. Na verdade, verifica-se que toda esta estrutura de emergência foi posta de lado e substituída por reuniões no Infarmed, cujo trabalho e relatórios não foram tornados públicos.

Por tudo isto, a solução para a incerteza e para as nossas necessidades, visíveis, de desconfinamento gradual só pode passar pelo cumprimento integral Constituição e do seu sistema de competências e funções, com ou sem estado de emergência constitucional e com ou sem outras medidas de emergência, as quais, além de temporárias e circunscritas, devem estar devidamente balizadas nos regimes jurídicos atualmente em vigor.