A Constituição da República Portuguesa garante a inviolabilidade da liberdade de religião (Art.º 41.º §1). Mas nem a lei constitucional, nem a ordinária, definem o que é religião. E porque o não fazem? A resposta usual é que não cabe a um Estado laico, e assumidamente neutro em questões religiosas, descrever ou delimitar o que é uma religião. Mas será que o Estado português é verdadeiramente laico e neutro em questões religiosas? Conhecendo o facciosismo da sua atuação noutras esferas sociais, a económica ou a cultural por exemplo, seria verdadeiramente extraordinário constatar que, quando chega ao religioso, o Estado não tivesse amigalhaços ou santinhos.

Os portugueses costumam definir religião por aquilo que conhecem melhor: o Catolicismo. Como o Catolicismo, que é uma religião, tem templos, sacerdócio, rituais, escrituras, código moral, santos e um sistema metafísico que inclui fé num único Deus criador do universo, assume-se usualmente que será religião qualquer sistema de vida ou pensamento que também contenha estes elementos.

No entanto, definições por analogia são em regra más, e esta não foge à regra. Assim, apesar de a Maçonaria também ter templos, sacerdócio, rituais, escrituras, santinhos e um sistema metafísico que inclui a crença num Supremo Arquiteto, poucos estão dispostos a admitir que também seja uma religião. Quem rejeita o Deísmo na categoria de religião cai no Teísmo: religião seria assim todo o sistema que inclua um ou vários deuses pessoais, por exemplo, o Hinduísmo. Mas e o Confucionismo? O Confucionismo também tem templos, sacerdócio, rituais, escrituras, código moral, santos e um sistema metafísico. Lá por esse sistema metafísico ser agnóstico no que se refere à existência de divindades e espíritos não retira ao Confucionismo o seu estatuto milenar de religião.

O que distingue religião de outros sistemas de pensamento, como filosofias, ciências ou ideologias não é, pois, a crença em seres divinos, mas sim em ser um sistema intelectual, ou um ideal de vida, baseado numa adesão suprema e incondicional. É estabelecer a ligação a um princípio que tem precedência sobre tudo o resto. Ao objeto dessa adesão suprema e incondicional usualmente chamamos deus, que pode ser quer o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, o Deus do Judaísmo; ou a harmonia social baseada nas cinco relações, o deus do Confucionismo; ou o nirvana, o refúgio do sofrimento recorrente no nada, o deus do Budismo; ou ainda o dinheiro, o deus de George Soros e de outros especuladores desalmados, a que o Papa Francisco chama “ídolos” e “falsas religiões”. Note-se que apesar de falsa, o dinheiro pode ser religião. Caso se afirme o contrário, cai-se no fundamentalismo de dizer que só há uma religião, aquela que é verdadeira; o que embora ontologicamente certo, não será politicamente-correto.

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Se o que é característico de religião é ser uma adesão suprema e incondicional, e se esta adesão não tem de ter como objeto um ser sobrenatural, pode ser que alguns sistemas que usualmente classificamos como filosóficos, científicos e ideológicos sejam de facto religiosos. Defender que o Budismo com a sua a sua adesão suprema à fuga ao sofrimento é religião, mas que o Racionalismo com a sua adesão incondicional aos ditames da razão não é religião é uma arbitrariedade; dizer que o Confucionismo na sua busca da harmonia social é religião, mas o Marxismo com o seu objetivo de construir uma sociedade igualitária não é religião é uma inconsistência.

Mas se o Marxismo é uma religião onde estão as suas igrejas? As igrejas marxistas estão nos partidos. Repare-se que o nome “partido” não tira a esta forma organizacional a realidade e as características de igreja, apenas a encobre. Não é necessário que uma organização se chame “igreja” para ser igreja. Às igrejas no Confucionismo chamam-se “escolas” e o Budismo japonês chama “fações” às suas igrejas, tal como também não se diz “Igreja Sunita” ou “Igreja Xiita” no Islamismo. Assim pode-se verdadeiramente dizer que o PS e o PCP estão como igrejas para o Marxismo assim como a Igreja Episcopal e a Igreja Ortodoxa estão para o Cristianismo: versões do original histórico diluído em contemporaneidade num caso, e fidelidade aos símbolos e liturgia tradicional no outro. E o Bloco? O Bloco está no Marxismo como os evangélicos estão no Cristianismo: com o fervor dos que acreditam possuir o verdadeiro “espírito” renovado.

Mas se o Bloco é uma igreja, uma seita moderna de uma religião centenária, e para além disso tem templos, sacerdócio, rituais, escrituras, código moral, beatos e um sistema metafísico que impõe uma adesão incondicional e suprema ao ideal de uma sociedade sem classes, o que está a fazer no parlamento? Não impõe a Constituição a separação entre “as igrejas e outras comunidades religiosas” e o Estado (Art.º 41.º §4)? E as instituições da república, o Tribunal Constitucional (TC) em particular, não fazem nada contra esta violação, senão formal, certamente material da Constituição? Ou será que basta que à forma organizacional de uma religião não se chame “igreja” para essa religião deixar de ser religião e passar a ser uma filosofia ou ideologia laica? Será que o TC aceitaria que a IURD se transmudasse em partido político, o PURD, e concorresse a eleições? Se não deixa, porque deixa o Bloco?

Ou será que a lei não é igual para todos? Será que, tal como acontece na esfera económica, o Estado português tem na esfera religiosa amigalhaços e santinhos de um lado, e enteados e heréticos do outro?