Clássicos de sempre, lidos e relidos, geração após geração, habituados ao respeito que se deve à cultura e àqueles que a ela se dedicam, repousavam tranquilos nas estantes, alheios aos ventos de mudança que o extremismo à esquerda e à direita preparava com a diligência dos fanáticos e a cegueira dos ignorantes.

Das bibliotecas e das nossas estantes chegam, agora, murmúrios de receio, pois, não se sabe exatamente como, de repente, o impensável se tornou opção, o absurdo se vestiu de normal, a intolerância perdeu pudor e já quase tudo lhe é permitido.

Apanhados nas teias do tribunal popular, que se alimenta do equívoco, que acusa, julga e condena à medida de interesses e ideologias, muitos são os livros que se queixam, indignados com as acusações de que são alvo.

Alarmados, os livros marcam, ao melhor estilo das nossas empresas públicas de transportes, um plenário para discutir o problema e definir formas de luta.

Consta que a Cinderela e a Branca de Neve são perigosas influências para as crianças e suas relações com as respetivas madrastas, a que se vem juntar, no caso da Branca de Neve, o infame pecado de ser branca… como a neve.

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Parece que os livros do Tintim são, afinal, colonialistas e racistas, disseminadores de estereótipos e preconceitos que desrespeitam os descendentes de milhões de oprimidos por anos de colonização.

O livro do capuchinho vermelho é acusado de normalizar o uso excessivo da força contra o lobo mau.

A coleção do Astérix, vendo-se acusada de reforçar uma visão estereotipada dos países e dos seus povos, procura em vão lembrar que o humor vive, em grande parte, da caricatura e do excesso.

Uns insurgem-se e prometem luta, outros, aturdidos, recuam envergonhados, culpados de expressar uma qualquer ideia contrária a um dos lados das barricadas erguidas por extremistas à esquerda e à direita.

Tentam explicar que, noutros livros, fala-se de regimes autoritários que, em tempos idos, na velha Europa, queimaram e censuraram livros e recordam que em muitos outros livros conta-se a História que é preciso conhecer para compreender o enquadramento social, cultural e político de cada época, exercício indispensável para se apreciar, entender e respeitar qualquer obra que se leia.

E eis que chega o dicionário, o livro que é pai das palavras. E, como todos os pais, sai em defesa dos filhos.

Começa com o exemplo da palavra ”preconceito”, injustamente maltratada, cujo significado ficou refém de uma conotação pejorativa, que impede os mais apressados de compreender o seu verdadeiro sentido.

Diz que a palavra “preconceito” está arrasada, deprimida, sente-se incompreendida, é vítima de bullying, sofre porque todos falam mal dela. Não tem amigos.

E a palavra “preconceito” não é a única a ver a sua saúde mental comprometida pois, garante o dicionário, há inúmeros casos de palavras que já ninguém respeita, como civilidade, ética, dever, coerência, honestidade, decência, responsabilidade, humildade…. Com a idade, foram trocadas por outras, como carisma, força, mediatismo, popularidade… Enfrentam um sério problema de autoestima.

O dicionário refere o caso especialmente preocupante da palavra ”verdade”, abalada por uma grave crise de identidade. Já ninguém sabe o que é a verdade.

Nos jornais, televisões e redes sociais, vê-se políticos e cidadãos a faltar à verdade, a juntar, em discursos vazios, desventuradas palavras que se encolhem vexadas, quando se descobrem metidas em tão lamentáveis preparos.

Durante a pandemia, boatos e mentiras contestaram a opinião de especialistas, desvalorizaram recomendações médicas, promoveram a desconfiança contra as vacinas e acabaram por custar a vida a muitos daqueles que, enganados, trocaram o saber científico por teorias da conspiração e esqueceram o significado da palavra “verdade”.

Depois há o caso das palavras “fascismo” e “radicalismo”, que, de tão solicitadas, sentem-se exaustas, à beira de um burnout. Vulgarizadas, aplicadas em excesso e por excesso, descobrem-se, subitamente, apartadas da importância que carregam. Antes usadas com a prudência que o seu significado impõe, são, hoje, utilizadas sem o cuidado, a solenidade e o recato que costumavam merecer.

Aos adjetivos, determinantes, pronomes e artigos há quem queira retirar as letras que lhes definem o género, amputando-os dos seus vetustos “a” e “o”’ para enxertar o indiferenciado “e”, transformando-os num Frankenstein ortográfico, sugestão a que o livro de Mary Shelley reage com pesar, pois, melhor do que ninguém, sabe que os monstros acabam, inevitavelmente, por virar-se contra aqueles que cometem a imprudência de os criar.

Diz o dicionário que, entre livros, palavras e o uso que deles fazem os homens, reina o caos no mundo das humanidades e das ciências.

Os problemas alastram e, psicologicamente afetados, há inúmeros livros e palavras a aguardar consultas no SNS, mas tardam em ser chamados, dizem-lhes que estão em lista de espera…

O dicionário regressa à palavra “preconceito” para explicar que somos todos preconceituosos porque, sendo o preconceito o resultado das nossas próprias experiências e do que ouvimos e vemos ao longo da vida, todos, sem exceção, formamos, involuntariamente, ideias pré-concebidas sobre a maioria dos temas.

Mais explica o dicionário que o preconceito é uma forma de aprendizagem e uma consequência desse mesmo processo de aprendizagem e que o problema não está nos nossos preconceitos, mas no que fazemos com eles e, por isso, a palavra que interessa é “escolha”.

Mais do que depressa, o livro Harry Potter e a Câmara dos Segredos junta-se à discussão para citar um dos seus personagens, Albus Dumbledore, que, muito oportunamente, explicou ao protagonista da saga que aquilo que nos define não é o que somos, mas as nossas escolhas.

Embalado pela achega de “Harry Potter”, o dicionário explica que, vez por outra, todos somos testados pelos nossos preconceitos e que o verdadeiro desafio reside em sermos capazes de, na solidão das nossas reflexões, reconhecer a diferença entre o certo e o errado e fazer as boas escolhas, decidindo não de acordo com os nossos preconceitos, mas apesar desses preconceitos.

O dicionário esboça um sorriso triste e recorda que, outrora orgulhosos, muitos dos nossos livros, clássicos e contemporâneos, arrastam-se, hoje, cabisbaixos, perplexos por perceberem que há quem discuta, seriamente (se é que tal advérbio pode ser aqui utilizado…) a possibilidade de excluir ou reescrever determinadas obras à medida dos que renegam a ciência e dos que não enquadram, não pensam e não percebem que os livros são, sempre, um reflexo do seu tempo e um ponto de partida para compreender a evolução desse mesmo tempo.

A leitura, a educação, a ponderação justa e equilibrada de contextos e conjunturas promovem a compreensão do outro e são a base para o respeito e a sã convivência entre diferentes culturas, única forma de promover, verdadeiramente, o entendimento entre pessoas e povos e evitar derivas autoritárias e extremistas, contrárias aos valores das democracias ocidentais.

Esgotado o anacrónico discurso do proletariado contra o grande capital, a esquerda radical teve de se reinventar e fez das causas identitárias e do ativismo climático radical as suas novas bandeiras, promovendo e exacerbando as suas manifestações mais extremadas.

Era apenas uma questão de tempo até que os excessos defendidos e cometidos, viessem cobrar a sua fatura.

Essa fatura chegou-nos da extrema direita, através de fenómenos mais recentes, mas igualmente perigosos, como o negacionismo, o terraplanismo, o criacionismo e outros “ismos”, que ignoram o saber científico, muitas vezes a duras penas conquistado.

Hoje, muitos são os que, alheios aos conselhos daqueles que escrevem e leem os livros, decidem contestar a importância das vacinas, negar as alterações climáticas, afirmar que a terra é plana, contrariar a teoria da evolução e declarar falsa a chegada do homem à lua…

O problema de negar o conhecimento científico é que, ao contrário do que acontece com as letras, o mundo da ciência está assente em leis que os homens não podem mudar ou interpretar ao sabor da sua vontade ou ideologia.

Com o resultado das últimas sondagens à vista de todos e com aquilo que se vai assistindo nos Estados Unidos e um pouco por toda a Europa, muitos se interrogam sobre os motivos do crescimento da extrema direita.

A resposta a essa questão está, como não poderia deixar de ser, nos livros, mais precisamente naqueles que nos ensinam as leis da física.

Posto isto, é chegada a hora de regressar aos trabalhos do plenário para assistir à intervenção do honorável livro Philosophiae, Naturalis, Principia, Mathematica, publicado por Isaac Newton no século XVI.

O ilustre livro começa por explicar que a Terceira Lei de Newton, nele enunciada (também conhecida por Princípio da ação-reação), estabelece que cada ação de intensidade, direção e sentido exige uma força de sentido contrário e igual direção e intensidade para, de seguida, concluir que, em consequência da citada Lei, o crescimento da extrema direita será tanto maior quanto maior se mantiver o extremismo à esquerda. Física pura…

O plenário já vai longo quando os livros, cansados e preocupados com este mundo em que os extremos se tocam, esmagando o centro, habitual reduto da sensatez e do bom senso, declaram-se inconformados, decidem que irão lutar e que o farão com as suas armas de sempre, o conhecimento que acolhem nas suas páginas.

Generosos, os livros disponibilizam-se para ser lidos até à exaustão. Não se importam de fazer horas extras, de adiar as férias e prescindir de fins de semana, de estar na linha da frente e de passar de um leitor para outro, sem descanso. Fá-lo-ão até que as suas páginas se soltem e se percam, até que as suas letras se esbatam, até que voltem a ser fonte privilegiada de saber, até que as pessoas reaprendam a pensar…

Os livros, remédio para as dores da alma e terapêutica segura contra a ignorância, são de venda livre, podem ser consumidos sem moderação, diariamente, a qualquer hora, em qualquer lugar, por adultos e crianças, antes ou depois das refeições e causam habituação.

Nesta contenda, estou, como sempre, ao lado das palavras e dos livros, a quem aproveito para homenagear pois, companheiros de uma vida, quando me chega a dúvida, me falta a calma ou me assolam as angústias, é neles que encontro distração, conforto, conselho, inspiração e que recupero a fé na humanidade.