Natal após Natal, repetem-se os seus inevitáveis clássicos: as compras de última hora, os almoços da empresa, as filas para recolher os doces encomendados, os anúncios que apelam ao sentimento, a alegria dos encontros, a saudade dos ausentes, as importantes decisões sobre onde passar a consoada e o dia de Natal, se na casa da mãe ou da sogra, sobre quem traz as sobremesas, as trocas em centros comerciais lotados no dia 26 de dezembro, a programação televisiva e, claro, as habituais estórias de Natal, onde não pode faltar  Um Conto de Natal.

Um Conto de Natal, escrito em 1843 por Charles Dickens, relata-nos as aventuras de Ebenezer Scrooge, personagem avarenta e mesquinha, a quem, numa véspera de natal, o seu sócio, falecido há vários anos, vem avisar que será visitado por três fantasmas que o levarão a percorrer os seus natais passado, presente e futuro.

Ao revisitar este clássico recordamos as agruras e angústias de Mister Scrooge na companhia desses fantasmas, numa viagem em que Charles Dickens nos vem recordar o verdadeiro sentido do Natal e a necessidade de não esquecermos o nosso passado e de prepararmos, no presente, o futuro que ambicionamos ter.

Difícil será esquecer as peripécias, a reflexão e as descobertas que levam Mister Scrooge a encarar a sua vida e o seu futuro com outros olhos, não se detendo apenas nos limites da sua existência, da sua ganância, para descobrir, afinal, o incomparável prazer de proporcionar felicidade a quem o rodeia e que as maiores riquezas não são as guardadas em cofres, mas no coração e na memória.

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Atrevo-me a dizer que quase todos os que conhecem Um Conto de Natal olham para Mister Scrooge sem pena pelos seus sustos e sem simpatia pelo seu alarme, uma vez que, enfim, a sua insensibilidade e avareza só poderiam levar a um triste e solitário futuro, de que apenas foi salvo pela intervenção de oportunos fantasmas, sem os quais acabaria em merecida e anunciada ruína, reflexo das escolhas que foi fazendo ao longo da sua vida.

A maioria de nós percorre o conto de Charles Dickens com o distanciamento de quem se considera imune a tais comportamentos e, por conseguinte, a salvo de um destino impiedoso, que cobra, sem fraquejar, a fatura do que no passado fizemos ou deixámos de fazer.

Sem cuidar de perceber que Mister Scrooge somos todos nós, arrastamo-nos pela vida distraídos, insensíveis às lições do passado, desprovidos de memória, alheios ao que é importante, deambulando, no presente, sem verdadeiras causas, correndo, perdidos em interminável azáfama, com pressa de chegar não se sabe aonde, sempre à procura do que ainda não temos e negligenciando o muito que já possuímos.

E, assim, embalados pela rotina dos dias, os natais presentes sucedem-se, transformando-se demasiado cedo em natais passados e, de repente, quase sem darmos por ela, encontramos o futuro e descobrimos que os natais que nos esperam já escasseiam e, bons ou maus, serão, no essencial, o resultado das nossas escolhas.

Não sendo provável que, à semelhança do velho Scrooge, venhamos a ser visitados pelos nossos fantasmas, cada um de nós deve cultivar o bom hábito de olhar para o passado, e, no presente, ter a coragem para mudar o que está mal, criando as condições para que, quando o futuro nos alcance, nos encontre prósperos, realizados e felizes, com a consciência tranquila, rodeados de bons amigos e amados pela nossa família.

Um Conto de Natal é uma lição sobre liberdade e responsabilidade individuais, traduzidas pelas decisões que tomamos na esfera pessoal, mas também na esfera coletiva, enquanto atores numa sociedade que é comum e cuja construção a todos compromete, responsabiliza e afeta.

Com eleições legislativas à porta, é chegado o momento de decidir generosamente, como mandam os bons sentimentos desta quadra, pensando não apenas no que nos convém pessoalmente mas também no que será melhor para a sociedade portuguesa no geral, impondo-se a necessária reflexão coletiva sobre que natais futuros desejamos para o nosso país, pois, à semelhança de Mister Scrooge e de cada um de nós, Portugal terá de os preparar no presente, fazendo as escolhas certas, nem sempre fáceis, porque, demasiadas vezes, o que nos dá jeito ou apetece, não é aquilo de que precisamos.

Convocado, ao estilo de Dickens, o fantasma do Natal presente português encontrou um país marcado por uma  grave crise institucional e de funcionamento dos serviços públicos, pela emigração massiva dos seus jovens, por uma enorme crise demográfica, por falta de habitação, pelo esmagamento do salário médio, com o consequente e perigoso desincentivo ao investimento em educação superior, pelo decréscimo continuado da qualidade da educação pública e por milhares de cidadãos que tardam em receber os cuidados de saúde de que necessitam, arrastando-se em penosas listas de espera, reféns de um Serviço Nacional de Saúde mal gerido, a romper pelas costuras, com urgências e serviços fechados ou fortemente condicionados.

Andando pelas ruas, o fantasma do Natal presente testemunhou o aumento de pessoas em condição de sem abrigo, mais pobres e mais portugueses de mão estendida à espera da ajuda do Estado, maioritariamente dependentes de empregos que não asseguram a sua subsistência.

Com o País neste estado, o fantasma do Natal presente assiste incrédulo a uma comunicação social que, guardadas poucas e meritórias exceções, não escrutina devidamente a prestação de quem nos governa e não promove a discussão de projetos para Portugal, contentando-se em comentar os casos e os casinhos que os protagonistas da nossa política vão produzindo com inegável zelo, numa sucessão de episódios lamentáveis que vão alimentando noticiários até que um novo descalabro substitua o anterior, de que já ninguém se lembra ou com que já ninguém se incomoda verdadeiramente.

E quando, por momentos, desvia os olhos deste país e dos seus problemas para os pousar nos portugueses, constata, com maior espanto ainda, que estes, perante tal infortúnio, premeiam nas urnas o populismo, o radicalismo, a desresponsabilização e a retórica esvaziada de ideias, sem qualquer exigência, irremediável e incompreensivelmente conformados com o país que têm.

O fantasma do Natal presente leva as mãos à cabeça e quase desiste de Portugal pois, espectro lúcido e atento, percebe a gravidade da situação, apressando-se a chamar o colega dos natais futuros, que rapidamente esclarece que nada pode fazer pois cada povo tem os políticos e, consequentemente, os natais que merece.

O fantasma dos natais futuros não augura nada de bom para as festividades vindouras, lembrando que aquilo a que assistimos no presente acabará por transformar Portugal num país maioritariamente habitado por pobres ou quase pobres, que, mesmo trabalhando, dependerão da ajuda do Estado para sobreviver.

O fantasma dos natais futuros sabe e avisa que o estado social não será capaz de suportar essa pressão e que, se Portugal não criar riqueza, a vida dos portugueses tem ainda muito por onde piorar, pois é bom de ver que, se a retórica e o populismo não têm regras e tudo aguentam, o mesmo não acontece com a matemática e, por isso, mais cedo ou mais tarde, a bem ou a mal, a equação que equilibra quem recebe do estado social e quem o financia acabará por impor-se, sobretudo num país em que a carga fiscal já ultrapassou, e muito, a escala do razoável.

Perante tudo isto, o fantasma do natal futuro alerta-nos para o inevitável aumento da exclusão social, da pobreza, da emigração, da corrupção e da criminalidade.

Já de saída, vai avisando que há de regressar e que aquilo que, nessa altura, verá depende exclusivamente dos portugueses porque, numa democracia, onde o povo é quem mais ordena, não há desculpas…

Em jeito de despedida, do alto da sua fantasmagórica lucidez, aconselha-nos a seguir o exemplo de Mister Scrooge: olhar atentamente para o presente, emendar a mão e acertar o passo. Sem olhar para trás, cansado e ainda atordoado com o tanto que viu, remata dizendo «depois não digam que eu não avisei…».