No próximo dia oito de março comemora-se o Dia da Mulher, trazendo nova oportunidade para refletirmos sobre a igualdade de género, mais concretamente, sobre o papel e os direitos das mulheres.

Como mãe, filha, esposa, trabalhadora, cidadã ou simplesmente mulher, sinto-me impelida a opinar, num tema em que, mais vezes do que o desejável, se tem confundido o essencial com o acessório.

Começo por declarar, falando exclusivamente em meu nome e com o devido respeito por quem pensa de forma contrária, que não me incomoda que um homem me dê passagem, me ceda o lugar nos transportes ou me abra a porta do carro; não me ofendo quando se referem ao sexo feminino como “sexo frágil”; não me enfurecem as piadas brejeiras; nunca me senti assediada por ouvir um “piropo”; não faço questão do “portugueses e portuguesas”; não me revejo na criação de quotas para mulheres em qualquer instituição e quanto à alteração de palavras para as tornar neutras ou lhes atribuir o género feminino só me ocorre exclamar “vade-retro!”.

Em compensação, revolta-me saber que, em 2023, no nosso país, vinte e duas pessoas foram assassinadas em contexto de violência doméstica, dezassete mulheres, três homens e duas crianças, uma sinistra contabilidade a que se juntam mais oito mortes por suicídio na sequência do crime cometido.

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Os referidos dados constam do “Relatório de Homicídios em Contexto de Violência Doméstica”, relativo ao ano de 2023, divulgado pelo Gabinete da Família, da Criança, do Jovem e do Idoso e contra a Violência Doméstica, organismo pertencente à Procuradoria Geral da República, sendo possível ler no relatório que em seis desses casos já havia antecedentes, mais precisamente vinte inquéritos, dos quais dez terminaram arquivados, seis se encontravam “pendentes” e dois foram julgados, resultando em uma condenação e uma absolvição.

Apenas num desses inquéritos foi imposta a restrição de contacto, com monitorização eletrónica, medida que, contudo, não se mostrou suficiente para evitar o homicídio.

Em dezoito dos vinte e dois homicídios relatados, a vítima habitava com o agressor, tendo os crimes sido testemunhados por catorze crianças e jovens.

Diante deste cenário, escolho orientar a minha indignação para a angústia e o pavor que uma criança deverá sentir ao assistir a discussões sucessivas envolvendo violência verbal e física dentro da sua casa, um lugar onde se deveria sentir segura e protegida.

Se sofrer, ou mesmo presenciar, atos de violência pode ser, por si só, extremamente traumatizante, imaginemos o que sentirá uma mulher quando essa violência lhe é dirigida por alguém que ama ou que um dia terá amado.

O que sentirá sabendo que seus filhos assistem ao seu sofrimento e humilhação, que choram e se encolhem de medo, que se trancam em seus quartos e tapam os ouvidos, que presenciam e interiorizam práticas inconciliáveis com o respeito, a amizade e o amor que devem pautar uma vida a dois.

Perante o terror que tudo isto encerra, não há como compreender a condescendência com que as autoridades, nomeadamente os Tribunais, parecem tratar aqueles que usam de violência contra as mulheres ou, para ser mais exata, contra aqueles que escolheram para partilhar a sua vida, porque, convém não esquecer, a violência doméstica não é um exclusivo das mulheres.

Não é aceitável que, no Portugal de 2024, ainda se desvalorize a violência doméstica e se encolha os ombros, continuando a dizer ou pensar que “entre marido e mulher não se mete a colher”.

Há que meter a colher, a família, os amigos, os vizinhos, os colegas de trabalho, a polícia e cada um de nós, porque sempre que alguém morre em contexto de violência doméstica, recorrente, conhecida e sinalizada, não há como não nos sentirmos responsáveis, enquanto sociedade, por uma morte anunciada, que poderia e deveria ter sido evitada.

Os números da violência doméstica em Portugal pedem medidas mais eficazes para proteger as suas vítimas, passando pelo reforço do apoio àqueles que, por questões económicas, estão reféns dos seus algozes, pela adoção de medidas excecionais para acelerar decisões em matéria de guarda dos menores, pelo agravamento das penas aplicadas e, em caso de demonstrada recorrência e reincidência, maior recurso à prisão preventiva.

A violência doméstica é um problema transversal na nossa sociedade, fazendo vítimas em todas as classes socioeconómicas, credos, idades, níveis de ensino… mas a realidade é que as dificuldades económicas vêm dificultar ou mesmo inviabilizar a reação por parte das vítimas, pelo que importa reconhecer que as mulheres que pertencem a classes mais baixas estão especialmente vulneráveis.

E, assim, chegamos ao tema do costume, que se prende com a obrigação do Estado de proteger os mais fracos, porque a interrupção dos ciclos de violência impõe, antes de mais, que a mulher seja livre e independente, estado que dificilmente se alcança sem um mínimo de autonomia financeira.

O que se exige ao Estado é que, através da Justiça, proteja as vítimas e não aqueles que as perseguem, ameaçam e ferem, garantindo que estes ficam, de facto, impedidos de as contactar e que assegure o funcionamento de mais centros de alojamento temporário, vigiados, destinados a albergar essas mulheres, concedendo-lhes o tempo de que necessitam para recuperar, organizar as suas vidas e seguir em frente.

Depois, essas mulheres farão o resto, como já demonstraram que são capazes, desde que lhes sejam dadas as oportunidades para começar de novo.

“Começar de novo” é o título de uma conhecida canção da Música Popular Brasileira (MPB), escrita por Ivan Lins e Vitor Martins para uma das mais populares séries da Rede Globo, transmitida no Brasil em 1979.

Em plena ditadura militar, a série ousou abordar os temas do feminismo e dos direitos das mulheres, como o aborto, a contraceção, o emprego, a maternidade e a violência doméstica, num país onde, até há pouco tempo, ainda vigorava o chamado direito à “legítima defesa da honra”, que permitiu que inúmeros crimes, especialmente contra mulheres, ficassem sem o merecido castigo.

Apenas em 2023 o Supremo Tribunal Federal do Brasil declarou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra” como justificação e atenuante para assassínio de mulheres por maridos e companheiros, com base na proteção da honra do homem, supostamente ofendida pelo comportamento da mulher.

Uma excelente notícia, apesar de incompreensivelmente tardia.

O uso da tese da “legítima defesa da honra” procurava tornar defensáveis os atos de violência contra as mulheres, desde que perpetrados no contexto da relação privada do casal, como se os sentimentos de posse, o ciúme, os ressentimentos, as paixões tóxicas e os ódios, que essa relação por vezes abriga, tornassem tais atos menos graves e reprováveis, mais compreensíveis, íntimos, inibindo a sua denúncia e tornando a atuação das autoridades mais complacente para com o agressor.

É forçoso reconhecer que, felizmente, numa escala bastante diferente da brasileira, também em Portugal, a justa valorização do respeito pela intimidade e privacidade na vida familiar e o caráter pessoal de muitos dos aspetos que envolvem os fenómenos de violência  doméstica levam a que este crime público seja, demasiadas vezes, ignorado ou desvalorizado por quem o testemunha e que subsista uma tendência, patente em várias decisões judiciais, para uma aplicação branda da Lei, alimentando a perceção de que os crimes de violência doméstica gozam, ainda hoje, de um estatuto menor, que beneficia infratores e aumenta a sensação de abandono e o sofrimento das vítimas.

A propósito do Dia da Mulher, estou certa de que iremos ouvir falar de violência doméstica, como também acontece sempre que nos chega a notícia de um novo caso, mas, depois de verdadeiramente indignados, esqueceremos o assunto e seguiremos em frente, enquanto as vítimas de violência continuarão sozinhas, aterrorizadas, até que tenham a felicidade de ver terminado o seu pesadelo, sem engrossarem as tristes estatísticas portuguesas.

Finalmente livres da violência, do medo e da vergonha, as mulheres poderão orientar toda a energia de que dispõem para realizar os seus sonhos, voltarão a sorrir, voltarão a amar, voltarão a viver e, à semelhança do que em 1979 já cantava Simone, poderão dizer que “vai valer a pena ter amanhecido, ter se rebelado, ter se debatido, ter se machucado, ter sobrevivido…”.