Nos dois anteriores textos desta série tentei explicar como Francisco Louçã, num texto publicado no Expresso, distorce a história e a política na génese do Liberalismo para tentar encaixar as diferenças entre as suas ideias e as dos liberais, numa espécie de traição a um Liberalismo de conveniência que só existe na cabeça dele. Neste texto pretendo centrar-me sobre a traição moral de Anacleto, nomeadamente, a ideia de que defender a liberdade económica e a economia de mercado são uma traição imoral ao Liberalismo que a pior espécie de liberais, os supostos neoliberais, cometeram em benefício próprio.

A caricatura do moralismo dos liberais de quem Louçã não gosta (ainda que em realidade ele não goste de nenhum), no estilo agit-prop que o caracteriza, é uma onde é incapaz de conceder ao adversário as melhores intenções. Da mesma forma que não se pode assumir, a priori, que um comunista não manifesta essas preocupações quando afirma que o caminho para a prosperidade generalizada e uma sociedade justa passa pela abolição da propriedade privada, um conservador pelo reforço da autoridade das instituições tradicionais, um social-democrata pelo voto e redistribuição da riqueza e um fascista pela concertação social de trabalhadores e patrões num objectivo comum e nacional, não se pode dizer que essa não é a preocupação de um liberal quando defende a economia de mercado. O que se pode criticar é a medida em que estas ideias são eficazes para atingir o objectivo pretendido, mas Louçã prefere a simplificação dos lugares-comuns que a sua religião propaga há décadas. Aqueles que ele acusa de neoliberalismo – Hayek e Buchanan em particular – simplesmente cometeram o pecado de recuperar a ideia de moralidade implícita na defesa da economia de mercado feita pelos primeiros liberais, que posteriormente se perdeu precisamente naquela corrente liberal que, não por coincidência, Francisco Anacleto tolera.

A preocupação com a moral por parte dos liberais é aliás embrionária. O Liberalismo surge em França do desconcerto com uma Revolução que acabou em Terror. Mme de Staël, que como vimos no primeiro texto foi uma das principais responsáveis pela emergência do projecto político do Liberalismo, já em 1795 lamentava o fracasso da Revolução que, na sua opinião, se devia justamente à deterioração moral da nação. O governo revolucionário permitiu juntar no mesmo cocktail político a satisfação dos apetites mais vulgares dos pobres com a corrupção e a cobiça dos ricos. A solução, para Germaine de Staël, era encontrar uma “alavanca contra o egoísmo”. Essa alavanca, acreditavam ser os liberais o governo limitado pelo respeito pelos direitos naturais. O mesmo tipo de reflexões e preocupações pode ser encontrado em Constant, Say ou Bastiat, grandes defensores clássicos da liberdade de comércio dentro do Liberalismo. Quero com isto dizer que é errado assumir que, quando estes autores defendiam a livre iniciativa, estavam menos preocupados com o bem dos mais desfavorecidos que outros que defendiam o contrário. Pelo contrário, quem leia Bastiat não pode senão constatar a crítica permanente àqueles poderosos que querem utilizar o monopólio da violência do Estado para seu benefício próprio através de mecanismos legislativos que impeçam o florescimento do mercado livre e, dessa forma, a liberdade e prosperidade das pessoas comuns. É por isso que nos seus escritos ataca sem piedade as falácias económicas em que estas regulações se baseiam de forma simples, clara e directa. Bastiat não está só a fazer uma apologia do laissez-faire, está a explicar que o intervencionismo e o proteccionismo são imorais porque prejudicam os mais desfavorecidos. E são imorais porque atentam contra os direitos naturais dos indivíduos. O mercado livre é, para Bastiat, a via de escape contra essa opressão imoral.

A partir de 1848, desmoralizados pelo inevitável fracasso de outra revolução francesa, os liberais voltaram-se para a Inglaterra e para os Estados Unidos como modelo de tolerância e prosperidade. Para muitos liberais de meados do séc. XIX o fracasso de 1848 foi um fracasso moral. O povo não estava moralmente preparado para as reformas liberais e, por ignorância, correu para os braços, ora de Napoleão III, ora de Karl Marx, isto é, para o egoísmo. É certo que existe nesta análise uma grande dose de paternalismo por parte dos liberais da época, Stuart Mill incluído, que se consideravam uma espécie de nova aristocracia ilustrada, de vanguarda da burguesia ou guardiões da sociedade justa e livre, mas o ponto importante aqui é perceber que sempre existiu uma dimensão moral e social no Liberalismo que Louçã, como muitos outros, prefere ignorar. Também serve para perceber porque é que, a partir de 1848, se começam a formar dois liberalismos, em muitos aspectos antagónicos, mas que, de facto, não representam necessariamente uma traição, nem ao Liberalismo imaginário de Paine ou Wollstonecraft, nem ao Liberalismo real de Staël e Constant.

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É a partir desta época que começa a surgir o embrião do Partido Liberal britânico, fundado em 1859, e por todos os lados os liberais começam a recorrer a palavras como “progresso” ou “reforma” (em Portugal foi particularmente utilizada a expressão “melhoramentos”) que, queiramos ou não, também têm uma forte componente moral, ainda que de um moralismo utilitarista. É a partir desta plataforma que os liberais vão dominar a política inglesa até ao fim do século e introduzem, para o bem e para o mal, o racionalismo como justificação para a superioridade dos seus programas políticos. Também é a partir desta época que os intelectuais liberais finalmente abraçam maioritariamente o laissez-faire, algo que não sucedia antes, já que muitos reconhecem no mercado um método racional superior para introduzir o progresso, o conhecimento e a consciência social aos indivíduos. O problema com esta aderência de meados do século XIX é que ao privilegiar o racionalismo dos argumentos perdeu de vista a dimensão moral dos mesmos. Ou, para ser mais exacto, foi abandonando a justificação moral baseada nos direitos naturais e alicerçando os seus argumentos numa nova ética – a ética utilitarista – que também está na base dos vários totalitarismos e da planificação social moderna ou, pelo menos, da propaganda que a circunda.

Se é certo que é a partir desse momento, e da separação entre utilitaristas e processualistas, que se começam a formar os dois troncos do Liberalismo que conhecemos hoje, não é menos certo que no tronco a que Louçã dá o beneplácito da fidelidade ao Liberalismo é onde se desenvolve a ideia do mercado como mecanismo impessoal e utilitário. Ainda que sem uma conotação negativa, pelo contrário, simplesmente como uma tentativa de quantificar o Liberalismo como ideia moral superior. O homo economicus, aquele agente cujo único objectivo é maximizar o lucro enquanto produtor ou a utilidade enquanto consumidor, é resultado do desenvolvimento da ética utilitarista deste Liberalismo. Louçã não poupa encómios a Stuart Mill em relação ao seu feminismo e ideal democrático, mas esquece referir que a introdução do homo economicus na metodologia económica também foi obra sua. Mais estranho parece que desculpe a Walras o pecado de ter matematizado, isto é mecanizado, o comportamento desse ser supremo do egoísmo materialista ao maximizar a eficiência dos mercados (teóricos) em que este desenvolve a sua actividade. No fundo, os chamados liberais-progressistas (em realidade liberais utilitaristas), companheiros provisórios de Louçã e herdeiros de John Stuart Mill e Walras, rejeitam como abjecção moral a caricatura disforme do mercado que os seus antepassados ideológicos criaram.

Infelizmente o homo ecomomicus de Mill e Walras gerou outra criatura, tão ou mais abominável – o “maximizador da utilidade social” – que Louçã não rejeita e todos os governos comunistas, fascistas ou social-democratas adoptaram na planificação económica e social. Esta construção racional possui os mesmos defeitos do homo economicus e mais um: nem sequer precisa conhecer os preços de mercado para saber o que é melhor para a sociedade. Os preços, sinais da escassez e utilidade relativa com que milhões de indivíduos avaliam subjectivamente os bens e serviços que necessitam e utilizam para poder actuar de forma a conseguir lograr os seus objectivos pessoais são simplesmente ignorados ou ingenuamente assumidos como dados. É aqui que entram, de entre os economistas que Louçã refere, principalmente Hayek e Buchanan que, desde um ponto de vista científico denunciaram, um a arrogância fatal e incapacidade de substituir a informação de mercado que nunca existe sob a forma de dados, o outro a existência de interesses próprios individuais no processo de decisão desse político-burocrata que supostamente maximiza a riqueza da sociedade ao implementar a planificação social. Mas, e o que é pior para Louçã, é que simultaneamente estão a fazer uma defesa do mercado livre desde um ponto de vista moral. Tal como fizeram Say ou Bastiat, estão a recuperar os velhos argumentos liberais de defesa do processo de mercado como instituição que protege a liberdade dos indivíduos contra o poder discricionário do Estado. É por isso que são traidores aos olhos inquisidores do trotskista aburguesado pelas poltronas aveludadas do Banco de Portugal. Não lhes perdoa terem gritado que o rei economista-planificador-social vai nu e que essa nudez é imoral.

Resta ao putativo beneficiário de um dos melhores planos de pensões privado para funcionários existente no país recorrer às teorias da conspiração e atribuir a estes autores filiação naquela corrente mitológica a que a religião socialista deu o nome de Neoliberalismo. O oportunismo “pragmático” da classe política não dispensa um bom vilão a quem atribuir a culpa quando a realidade se nega a conceder, mais que aos favoritos que operam à sombra do poder político, as recompensas terrenas que o planificador prometeu a todos. O Neoliberalismo é, dentro do panteão da modernidade, o responsável por todas as desgraças, reais ou imaginárias, que afectam a humanidade: a pobreza, a desigualdade económica, o heteropatriarcado, o racismo sistémico, as alterações climáticas, a corrupção, o fraco crescimento económico, as guerras, a emigração, etc. etc.

O grande senão é que a maior parte destes problemas parece não desaparecer com a hiper-regulação que o poder político produz, ao ritmo de vários quilos de legislação adicional todos os anos. Para complicar mais a situação aos crentes, não se conhece ninguém que se assuma como neoliberal. A realidade é que o termo “Neoliberalismo” é uma palavra oca de conteúdo, utilizada como bicho papão, em que realmente ninguém se revê. Como se isso não fosse suficiente, os suspeitos do costume – Mises e Hayek – têm alibi. A exegese dos anti-liberais sobre a origem do “movimento” neoliberal remete a um encontro entre economistas defensores do mercado livre, promovido pelo jornalista económico americano Walter Lippmann em Paris, em 1938, onde curiosamente Mises e Hayek tomaram a posição oposta àqueles que, nesse colóquio, propuseram a fundação de um “neoliberalismo”. Ou seja, para Louçã neoliberal é aquele que se opõe ao Neoliberalismo.

Mas não só a proposta de um neoliberalismo ficou no ar e não foi realmente adoptada por ninguém, como o grupo que ali o propôs, liderado por Rüstow e Röpke, é sensivelmente o mesmo que, depois da Guerra, já com Böhn e Eucken, adoptou o nome de Ordoliberalismo e inspirou o chamado “milagre alemão” da pós-guerra, atribuído principalmente às reformas económicas e sociais de Ludwig Erhard. No fundo, os ordoliberais, com o seu Estado Social e sua regulação empresarial seriam o mais próximo a neoliberais que existiu e não Mises ou Hayek que se opuseram a este. Não me surpreende que na cabeça de Louçã estas correntes sejam todas iguais porque, de facto, desde um ponto de vista socialista provavelmente até são, mas exactamente na medida em que para Louçã são todos iguais é que não se pode deduzir daqui nenhuma traição ao Liberalismo. Nem de ordoliberais, nem de liberais clássicos, nem de liberais modernos.

Para aprofundar um pouco mais neste tema, ainda que duvide que Louçã seja consciente do facto, a acusação de neoliberal a Mises até é anterior a 1938. Nos anos 20 já Mises era chamado assim tanto por marxistas como Meusel, como por fascistas como Spann.  Isto também ajuda a explicar a elasticidade do termo entre socialistas de todos os credos. Só que “neoliberalismo”, para estes autores dos anos 20, era sinónimo daquilo a que chamamos hoje em dia marginalismo, isto é, os desenvolvimentos da disciplina económica que tornaram obsoleta a teoria do valor pelo trabalho imputado de Karl Marx e, deste modo, todo o edifício económico em que a sua análise social se sustentava. Mises era “neoliberal” por ter aplicado o marginalismo na elaboração do seu trabalho sobre a impossibilidade do cálculo económico numa comunidade socialista em 1920. A grande ironia disto é que a resolução do “paradoxo do valor” pela utilidade marginal foi uma ideia desenvolvida e apresentada independentemente a partir de 1871 por três economistas: Jevons, Menger e… como o próprio Louçã reconhece…Walras. Ou seja, para fascistas e comunistas Walras também era neoliberal. É caso para dizer que não são liberais como Hayek e Buchanan quem trai o Liberalismo, mas liberais como Walras quem acabaram por trair o Socialismo e, deste modo, ao próprio Louçã.