Eram a piedade e o terror, de acordo com Aristóteles, os singulares propósitos da tragédia, e não a condescendente capitulação à experiência comum – como se o que aconteceu a Édipo fosse um episódio de urticária, um péssimo investimento numa tecnológica, algo terrível que poderia muito bem acontecer a um vizinho e que vagamente esperamos que não nos aconteça a nós. Na grande tragédia, complexas abstrações e emoções extremas encontram expressão numa sublime estilização – textos profundamente poéticos, o elusivo e rico vocabulário do mito, o canto e a dança ritualizados em que ressoam comungados valores religiosos e sociais– o artificialismo, enfim, que paradoxalmente, em vez de diminuir, sublima os grandes temas e emoções: sem esta estilização, aqueles textos, despojados e nus, pareceriam embaraçosamente murchos e esvaziados.

E foi nesta armadilha que Mortágua, arrastando para o debate com Montenegro as demasiadamente reais lágrimas de uma avó, se deixou enredar: herdeira daquela preferência pós-moderna e pós-freudiana pela psicologia em detrimento da política como tema para o drama, acabou por inevitavelmente miniaturizar e deturpar o que naquela história houvesse de trágico, sublime, excessivo e, consequentemente, verdadeiro. Convocando a avó para o reino quotidiano e vil dos bicos de papagaio, da correspondência trocada com senhorios e do preço das nêsperas, Mortágua expulsou-a da verdade e, na melhor tradição soviética, substituiu-a por um hino, anuiu à condescendência da familiaridade, forjou uma verdade demasiadamente real para ser crível, retirou-lhe o chão que nos consentiria a piedade e o terror e, recusando o artificialismo, denunciou o embuste.

No fundo, Mortágua ignora, benza-a Deus!, o que os tragediógrafos descobriram há já 25 séculos e que Coppola, um dos seus mais dilectos discípulos, reencenou em O Padrinho: que a verdade, para ser crível, tem de estar sujeita a anomalias estruturais aparentemente deliberadas; que é o mito, e não a verdade, o melhor instrumento para investigar a verdade, a miséria, a abjecção, a nobreza, a violência e a nossa aparente incapacidade para lhe resistir; que a morte, justamente por ser irrepresentável, pode ser tão rotineira, comum e necessária como mijar.

Coppola tem, neste aspecto, cenas de antologia, mas esta de O Padrinho é icónica: Clemenza recebeu a dura incumbência de garantir que Paulie é punido pelo atentado à vida de Vito Corleone. O assunto é acertado com a impaciente ligeireza de uma lista de compras e o homicídio é levado a cabo de forma rápida e fria enquanto Clemenza urina: ele afasta-se do carro, abre a braguilha e, acto contínuo, são disparados três tiros. A câmara está perto de Clemenza, ele vira a cabeça apenas o suficiente para permitir que o espectador se dê conta de uma ligeira reação: talvez um toque de tristeza inesperada no seu rosto, resignação sobretudo – uma paciente abdicação, imaginamos nós, diante da trágica necessidade de tudo. No entretanto, a câmara está incrivelmente longe de Paulie e Rocco, o homem do gatilho, suficientemente longe para que a brutalidade – doméstica, quase familiar – preserve, lá está, a impessoalidade do gesto.

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A deslocação da realidade para o mito como tema do drama foi, talvez, o primeiro e maior exemplo do particularíssimo génio da tragédia para a abstração e purificação – qualidades que a tornaram o instrumento artístico por excelência para dissecar, de forma quase sempre desencantada, a vida nas suas múltiplas e paradoxais dimensões. Essas questões foram exploradas com uma combinação de subtileza intelectual e verve teatral possibilitada pela propensão natural do género para o simbólico, para o abstracto e para o metafórico em detrimento do naturalista. Apenas na tragédia, onde (por exemplo) as mulheres tão amiudadamente representam o reino doméstico, e os homens o público, onde um tapete vermelho dá corpo ao passado sangrento de uma família, e um advogado é uma divindade olímpica (Robert Duvall é filho de Hermes e ninguém me convence do contrário!) é que um melodrama familiar envolvendo péssimas escolhas, negligência conjugal, abusos sortidos e homicídios punitivos poderia tornar-se, como acontece na Oresteia e em O Padrinho, uma alegoria dos dilemas da justiça, de uma vida titubeante entre a pulsão e a regra, entre a civilização e a barbárie.

Quão relevantes deveriam ser a proximidade e a familiaridade para uma tragédia grega? De acordo com os tragediógrafos clássicos, zero. Sabemos que nos primórdios do género surgiram algumas peças que abordavam assuntos da chamada “vida real” – A Queda de Mileto de Frínico, por exemplo – mas na maior parte dos casos, os dramaturgos atenienses procuraram um outro tipo de “familiaridade”, mais subtil, simultaneamente mais abstracta e duradoura do que a proporcionada por referências detalhadas a acontecimentos reconhecíveis.

A tragédia estava muito mais interessada em explorar vigorosamente o riquíssimo veio do mito cujas histórias sobre um número relativamente pequeno de famílias divinas e humanas poderiam lembrar ao público os males próprios sem por isso o atolar nos vis detalhes da realidade que, estiolando a experiência, definham a verdade.

Enquanto Clemenza fecha a braguilha, a erva alta ondeia ao vento e, apesar de nunca termos estado em Long Island, é-nos familiar e estranha aquela frieza com que reconhecemos que a brutalidade pode ser calorosa, despreocupada, idílica até: Leave the gun. Take the cannoli. E o insuportável silêncio recolhe o peso oculto, não apenas do nosso remorso – logo nós, que nunca participámos num homicídio – mas de aquela tarde crescer em torno da espessura de uma verdade em cujos alçapões do sono continuaremos a cair, ávidos por lautos banquetes de cannoli, ricotta e catarse para que Mortágua nunca foi convidada.