Segundo Anders Fogh Rasmussen, ex-Secretário Geral da Nato e ex-primeiro ministro dinamarquês, durante a Cimeira da Nato de 2008 em Bucareste, em que se discutiu a adesão da Ucrânia e da Geórgia à NATO, Putin argumentou que a Ucrânia, em geral, e a Crimeia, em particular, “não eram independentes”. Para a Rússia, “a Ucrânia não é um Estado”. Após a anexação da Crimeia, o Presidente russo afirmou que “russos e ucranianos são um povo”, insistindo num argumento etnocêntrico. E, em 2016, o então primeiro-ministro russo reiterou que nunca tinha existido Estado na Ucrânia – antes ou depois de 2014.

Toda esta narrativa do Estado russo é feita ao arrepio do Memorando de Budapeste de 1994, do qual a Rússia é signatária, e que oferecia garantias de segurança à integridade territorial da Ucrânia que, em troca, abdicou, nessa data, do terceiro maior arsenal de armas nucleares do mundo. Não obstante, e ao longo da última década, a Rússia despiu a Ucrânia de todos os elementos que, de acordo com o Direito Internacional Público (DIP), fazem de um Estado um Estado soberano.

É esta a base da estratégia de Putin para a Ucrânia, clarificada no discurso de 21 de fevereiro, e consumada na cartado Representante Permanente da Federação Russa na ONU ao Conselho de Segurança de 24 de fevereiro: a Rússia, não reconhece à Ucrânia o estatuto de nação independente. Infelizmente para a Rússia, no plano do direito prevalece o princípio uti possidetis juris relativamente a quaisquer daqueles argumentos. Como afirmou o TIJ, este princípio geral “está logicamente ligado ao fenómeno da obtenção da independência, onde quer que ela ocorra. O seu objetivo óbvio é evitar que a independência e a estabilidade dos novos Estados sejam ameaçadas pelas lutas fratricidas provocadas pelo desafio das fronteiras após a retirada da potência administradora” (Burkina Faso/Republic of Mali, parag. 20).

Numa entrevista anonimizada com um académico russo, atualmente a viver no exílio, divulgada na plataforma alemã Verfassungsblog, é feita uma revelação sombria: a investigação independente em DIP é uma atividade criminalizada de facto. Pelo contrário, a Ucrânia, desde o primeiro dia da invasão, e ao mesmo tempo que trava uma guerra, tem mantido o DIP na ordem do dia, recorrendo a todos os instrumentos disponíveis, e sujeitando este ramo do direito, talvez a um derradeiro teste final.

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A Associação Alemã de Direito Internacional, liderada por Anne Peters, publicou um comunicado no dia do início do ataque armado afirmando que “a linguagem do DIP está a ser deliberadamente mal utilizada pela Rússia para fazer avançar alegações legais que são juridicamente insustentáveis”. Peters apelou a todos os Estados e atores internacionais para que exponham estes argumentos fraudulentos. A insustentabilidade das posições russas ficou ainda bem demonstrada quando os seus próprios advogados no Tribunal Internacional de Justiça se retiraram, alegando que se tornou “impossível representar em fóruns dedicados à aplicação do Direito, um país que tão cinicamente o despreza”.

A comunidade russa, e independente, de DIP está amordaçada. Tal impõe uma responsabilidade acrescida aos académicos de Direito Público para que exponham a farsa com que Moscovo insiste em mascarar a sua agressão ilegal à Ucrânia, usando e abusando de argumentos jurídicos.

A Rússia justificou o seu ataque com uma mistura do direito à legítima defesa (preventiva e coletiva), e falsas alegações de genocídio, recorrendo à reescrita da História como arma geopolítica. Nenhum destes argumentos, contudo, resiste ao escrutínio jurídico.

Para afastar o princípio da proibição do uso da força e da não-intervenção, a Rússia invoca, como primeiro fundamento, a legítima defesa, pelos seguintes factos: em primeiro lugar, teria havido uma traição da NATO à promessa de não alargamento a leste (legítima defesa preventiva); em segundo lugar, o apoio às Repúblicas de Lugansk e Donetsk, e o seu dever de proteger os cidadãos russos que se encontram na Ucrânia, referindo-se a uma doutrina de DIP bastante contestada – o dever de proteção de nacionais no estrangeiro (legítima defesa coletiva ou pedido de assistência militar).

Em primeiro lugar, não existe qualquer compromisso juridicamente vinculativo que tenha sido violado no sentido do não alargamento da NATO a leste. Como Gorbachev veio a reconhecer em 2014, o único compromisso assumido respeitava ao não envio de forças da NATO para o território da Alemanha de leste. Mesmo que essas promessas tivessem existido, elas não seriam juridicamente válidas: não seria possível garantir que um Estado soberano, neste caso a Ucrânia, ficasse impedido, ad aeternum, de requerer a adesão à NATO, ou que, tal como em novembro de 2013, aspirasse a assinar um Acordo de Associação com a UE. A ter existido tal promessa, esta seria produto de um determinado contexto político, e não juridicamente vinculativa, e, como tal, não poderia constituir fundamento para uma intervenção militar.

É difícil aferir se a legítima defesa agora alegada pela Rússia, e que inequivocamente abraça, corresponde a uma evolução do – muito contestado – conceito de legitima defesa preventiva, numa argumentação cínica com intuito político de relembrar os erros americanos no Iraque. Ou se este argumento, agora cuidadosamente formulado em termos jurídicos, apenas corresponde ao defendido há um século atrás por Ivan Ilyin – o filósofo de Putin, segundo Timothy Snyder:  as intervenções militares da Rússia foram sempre em legítima defesa. A Rússia teria sido sempre vítima de um “bloqueio continental” cíclico por parte da Europa. Mais uma vitimização russa com base na história que não esconde o que foi reportado por Mary Elise Sarotte, no ano em que Putin assumiu a presidência, quando este afirmou perentoriamente: “é preciso atacar primeiro, e com tanta força que o oponente não se levantará”.

Relativamente à alegada legítima defesa coletiva ou assistência militar a pedido das Repúblicas de Lugansk e Donetsk, importa clarificar desde logo que estas não constituem Estados independentes. Apenas o governo de um Estado pode solicitar ajuda militar externa, como tem afirmado o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) (Nicaragua, parag. 246). Estas zonas, após a declaração da independência em 2014, não foram reconhecidas como Estados. Aliás, nem pela própria Rússia, que continuou a respeitar os acordos de Minsk até à invasão. Tal reconhecimento aconteceu apenas pouco antes da invasão – uma decisão instrumental e teatralizada para a utilização do argumento da legítima defesa coletiva ou assistência militar, a pedido de um Estado soberano que mais ninguém, incluindo a ONU, reconhece enquanto tal.

Esta secessão unilateral não é reconhecida pelo DIP. O direito à autodeterminação é um princípio essencial do DIP, com estatuto de ius cogens. Este direito deve ser prosseguido dentro do território estadual (e existe espaço para se discutir a questão da implementação dos Acordos de Minsk relativamente à autonomia destas províncias), mas não existe um direito à secessão unilateral fora do contexto colonial, a não ser que ocorram violações sérias de direitos humanos.

E é por essa razão que para promover a “operação militar especial”, a Rússia invoca a necessidade de proteger as “pessoas que têm sido sujeitas a abuso e genocídio por parte do regime de Kyiv durante oito anos.” Tal justificaria, segundo a opinião russa, e só russa, uma
secessão corretivasecessão como remédio para ataques sistemáticos aos direitos humanos de que é alvo a população secessionista. Embora esta questão seja também controversa no DIP, é seguro que não atingimos o limiar factualmente exigível para uma secessão corretiva, mesmo que esta se tenha como admissível: por exemplo, o relatório de 2021 da Missão de Monitorização Especial da OSCE na Ucrânia revela, um total de 16 mortes de civis resultantes de violações de cessar fogo nas regiões de Lugansk e Donetsk. Embora lamentável e condenável, este número de mortes não corrobora a existência de genocídio, nem de graves violações de direitos humanos – como atestam os restantes relatórios, desde 2014. A Rússia não apresentou quaisquer dados factuais e objetivos que permitam substanciar a tese de que estaria em curso um genocídio na Ucrânia, algo que o TIJ veio agora confirmar.

O recurso ao argumento de alegado “genocídio”, invocando uma intervenção humanitária ou pedido de assistência, é mais uma tentativa, política e não jurídica, de estabelecer uma analogia com a primeira utilização da força sem autorização do Conselho de Segurança da ONU pela NATO, no Kosovo, em 1999, contra a República Federal da Jugoslávia. Mas essa intervenção deve ser discutida e interpretada à luz do conhecimento e cânones da época, num quadro em que a comunidade internacional tinha sido objeto de forte crítica pelo facto de não ter impedido o genocídio no Ruanda em 1994, cujo número total de vítimas foi superior a um milhão. Subscrevemos por isso a tese de que os Estados-membros atuaram então de boa-fé, na convicção de que estava iminente um genocídio da população kosovar a qual, contudo, o que se veio posteriormente a revelar como infundado. Acresce que se tratou de uma decisão coletiva, e não uma ação unilateral de um Estado, e que não deixou de obedecer ao escrutínio democrático e de uma imprensa livre sobre uma decisão política tomada em respeito pelo Estado de direito de dezenas de países da comunidade internacional.

De todo o modo, a responsabilidade de proteger, à luz do DIP, quando envolve intervenção militar, carece sempre de autorização do Conselho de Segurança, o que a Rússia não conseguiu, nem tentou, obter. Uma autorização que, reconheça-se, também não existiu no caso da invasão do Iraque. Mas por essa mesma razão, e ao contrário do que a Rússia alega, o Ocidente não se uniu nessa guerra ilegal, tendo a mesma sido repudiada por membros relevantes da NATO como a França e a Alemanha, e afetado, de modo claro, as respetivas políticas externas e as relações com os Estados Unidos. Acresce que, ao contrário da guerra do Iraque, que tinha como alvo um ditador, a invasão da Ucrânia visa a deposição de um governo democrático e legítimo.

Infelizmente, a violação de normas de direito internacional pela Rússia não se fica por aqui. Nos termos dos Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos, aprovados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, a Rússia deve cessar o ato ilícito, assim considerado pela Assembleia Geral da ONU, e oferecer garantias de não repetição; e, em segundo lugar, assumir a responsabilidade pela indemnização dos danos causados, incluindo quaisquer danos materiais ou morais (artigos 30-34º). E ao bombardear o Teatro de Mariupol, a Rússia violou também a Convenção da Haia de 1954 sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado. E a sua tentativa de se furtar a outras responsabilidades, evitando apelidar o conflito como uma guerra, não vingará. Como bem sabem os juristas do Kremlin, não há necessidade de uma declaração formal de guerra, ou de reconhecimento do estado de guerra por parte da Rússia, para que a situação se qualifique como um conflito armado internacional. Chame-se-lhe o que quiser, as Convenções de Genebra (I – IV) de 1949 são claras, e as partes em qualquer conflito armado internacional estão vinculadas por estes parâmetros, uma vez que foram universalmente ratificadas, incluindo pela Rússia e pela Ucrânia.

A dimensão da ilegalidade cometida pela Rússia uniu países numa das mais expressivas coligações na história da Assembleia Geral da ONU, o órgão legislativo global por excelência. Uma coligação em nome do direito internacional. Para se apreciar verdadeiramente o poder que o direito internacional está a exercer neste conflito, importa compará-lo com as outras duas intervenções russas, na Síria e na Crimeia. Nestes dois casos, a Rússia não se atreveu a violar explicitamente princípios fundamentais da ordem jurídica internacional, designadamente o Art. 2 da Carta das Nações Unidas. Na Síria, porque a Rússia agiu com o consentimento do Presidente do país. E na Crimeia, em fevereiro de 2014, por ter agido sob dissimulação, onde os soldados russos estavam disfarçados e sem ostentarem insígnias nem bandeiras. Denotando consciência das implicações legais.

É, assim, claro, que a invasão da Ucrânia no dia 24 de fevereiro de 2022 pela Rússia é uma flagrante violação do direito internacional. E é essa indiscutível flagrância que está a legitimar a maior ação sancionatória não-violenta alguma vez conduzida contra um Estado por organizações internacionais, por Estados, por empresas e por indivíduos.

Não são apenas as circunstâncias políticas, ou os efeitos mediáticos das imagens de guerra em sociedades abertas, ou sequer quaisquer cálculos sob lentes geopolíticas ou realistas que estão a mobilizar sociedades inteiras no castigo do infrator. Esta ação corresponde antes ao que Hathaway e Shapiro chamam de “outcasting”, isto é, a exclusão de um Estado que infringiu o direito internacional dos benefícios da cooperação global. E é o resultado de décadas de construção normativa, de regras de convivência entre nações. Uma construção que torna a agressão russa intolerável e indesculpável, nos dias de hoje.

A obsessão por uma certa versão da história parece estar na origem das ações ilegais da Federação Russa. Mas talvez seja avisado não ignorar outras versões históricas. Designadamente a dos Tribunais de Nuremberga e de uma das suas conclusões:

A guerra é essencialmente uma coisa má. As suas consequências não se limitam apenas aos Estados beligerantes, mas afetam o mundo inteiro. Iniciar uma guerra de agressão, portanto, não é apenas um crime internacional; é o crime internacional supremo, diferindo apenas de outros crimes de guerra por conter em si o mal acumulado do todo.

Os Tribunais deram conteúdo judicial ao que Aron Trainin, um notável jurista soviético e judeu, articulou como “um crime contra a paz“, já na década de 1930. Segundo Trainin, as guerras de agressão, em busca de “objetivos predatórios”, fazem “troça dos princípios e normas reconhecidos pela humanidade civilizada”.