Nos últimos meses, os profissionais de saúde – em tempos heróis com honras de palmas às janelas – transformaram-se no depósito da frustração de utentes desesperados pelas falhas no acesso a cuidados de saúde. Passaram de bestiais a bestas. Precisamos de perceber o motivo desta viragem: um SNS já de si deficiente, que ficou Covid-19 dependente.

Ao contemplar diariamente as filas à porta dos serviços, o barulho incessante dos telefones, a azáfama de registos redundantes e de tarefas obtusas e a redução do horário de algumas unidades de saúde por falta de profissionais, é fácil perceber que algo vai mal.

Começando pelo telefone, não deixa de ser curioso que, na pandemia da Covid-19, se tenha instituído que esta seria uma das vias preferenciais de contacto com o SNS. A ideia já teria sido má há um ano, porque desde há muito que os telefones são identificados como uma lacuna grave das unidades de saúde e porque a utilização do email não é transversal à população. Já antes, os próprios profissionais de saúde contactavam as pessoas através dos seus números pessoais, devido às insuficiências do sistema. Era, portanto, previsível o que viria a acontecer: se antes era difícil contactar o centro de saúde, agora é uma façanha digna de uma epopeia.

Mas o Ministério da Saúde achou por bem ser este o modelo de contacto com os centros de saúde, seja para pedidos de receituário, para agendamentos, ou mesmo para a realização de teleconsultas. Aliás, esta forma de contacto à distância deve representar, “desejavelmente”, pelo menos 50% dos contactos com o médico, de acordo com as últimas orientações do Ministério da Saúde. A própria formulação espelha bem que, caso os médicos queiram fazer mais consultas presenciais, mediante situações específicas, o ónus recai sobre quem não fez o “desejável”. Pelo contrário, não está vedada a realização de 20%, 10%, ou mesmo 0% de consultas presenciais, o que certamente será confortável para alguns profissionais de saúde.

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Em caso de doença aguda, então é mesmo preferível que se ligue primeiro para os centros de saúde, utilizando aquela mesma via telefónica que nunca deu resposta às necessidades e que agora – com um aumento imensurável de solicitações – vai passar a funcionar, magicamente. Em alguns locais, mais do que recomendação, o telefonema passou a ser critério de admissão: se cometeu o pecado de não conseguir ligar para a Unidade de Saúde antes de se deslocar ao local, terá de voltar quando conseguir!

Em cima de tudo isto, persistem problemas com a quantidade de profissionais de saúde. Não é expectável que os mesmos quadros consigam manter todas as tarefas rotineiras quando lhes é diminuída a agenda para consultas presenciais e é somada à equação a avaliação indiscriminada de doentes por telefone, em jeito de teste em cenário real nacional; e a avaliação, o acompanhamento e a testagem de casos suspeitos e confirmados de Covid-19. Como se fosse coisa pouca, as tarefas incluem também os turistas que pretendem viajar para a Região Autónoma da Madeira precisando de realizar testes, ao abrigo de acordos entre a RAM e as Administrações Regionais de Saúde, num misto de dever com lazer.

Chegados aqui, deparamo-nos com um excesso de mortalidade por explicar no nosso país. Precisamos de analisar os dados objetivos e corrigir o rumo, se for caso disso, fugindo à tentação de procurar respostas simples dos Messias da Covid-19, aqueles que defendem que a Covid-19 matou mais doentes sem o vírus do que com ele, negando o facto de estarem montados em cima de realidades favoráveis, que só existem porque algo foi feito com a colaboração de todos, com bons resultados aparentes em comparação com outros países.

Ao avaliar os números da mortalidade nacional em tempo real, na plataforma eVM – Vigilância da Mortalidade, há vários pontos que se destacam. Em primeiro lugar, ao contrário do que já foi afirmado pela Diretora-Geral da Saúde, o calor, isoladamente, não explica o excesso de mortalidade ou, pelo menos, não explica de forma satisfatória ao ponto de acreditarmos que não seriam evitáveis. Estas “vagas de calor” são diferentes. Analisando os dados homólogos dos cinco anos anteriores (2015 a 2019), em nenhum mês se registou uma proporção de óbitos fora das instituições de saúde inferior a 60%.  No entanto, em 2020, esse facto foi verificado em 4 meses consecutivos (março, abril, maio e junho). Ao incidir na comparação do ano 2020 com a média dos meses homólogos dos cinco anos anteriores, no mês de julho contamos já um acréscimo de 3789 mortes fora das instituições de saúde e 774 nas instituições, isto depois de um início de ano positivo em termos de mortalidade – em fevereiro, registavam-se menos 1264 mortos do que a média desse período.

Esta disparidade – que ultrapassa claramente os 1750 óbitos confirmados por Covid-19 – revela-se nas mortes no domicílio, mas é particularmente acentuada nos óbitos que ocorreram em “outros” contextos que não o domicílio ou as instituições de saúde. Considerando a faixa etária em que ocorreu essa mortandade, faz sentido começar a procurar respostas acerca desses “outros” locais nos lares de idosos.  É que na análise das cerca de 4400 mortes em excesso, contam-se 4178 óbitos acima dos 70 anos (95%). Também aqui é evidente um início de ano favorável, com menos 1120 mortes em fevereiro em relação à média homóloga dos últimos cinco anos. Acontece que a tendência reverteu em março, sendo possível observar picos de mortalidade nesta faixa etária em abril (+1438 óbitos; acréscimo de 20,47% em relação à média do período homólogo de 5 anos), maio (+931 óbitos; acréscimo de 13,81%) e julho (+2096 óbitos; acréscimo de 33,22%).

Se é verdade que estes números não podem ser explicados inteiramente pela Covid-19, também o é, que o franco predomínio de idosos a morrer fora das instituições de saúde, em meses consecutivos e de forma pouco usual, merece um esclarecimento cabal na origem para que não se repitam ao longo de uma guerra que se prevê longa, principalmente considerando que a sobrecarga dos serviços de saúde é dificilmente invocável. Isto porque, de acordo com os dados do Portal da Transparência do SNS e da Plataforma de Monitorização dos Cuidados de Saúde Primários:

  1. Havia disponibilidade de meios de socorro destinados a situações de emergência. Em abril, maio e junho de 2020, o número de saídas das viaturas médicas de emergência e reanimação (VMER), por exemplo, esteve mais de 20% abaixo do período homólogo. Em julho, mês em que se registou um aumento significativo da mortalidade, esteve 12% abaixo do período homólogo.
  2. Não houve colapso dos Serviços de Urgência. De março a junho, verificou-se uma quebra de atendimentos nestes serviços, ao nível nacional, de 38,7%. Esta quebra foi evidente para os atendimentos triados com todas as cores, o que incluiu os casos mais graves: vermelhos com redução de 26,7% face ao período homólogo; e laranja com redução de 33,6% em igual período. O que os números não permitem perceber é o que terá acontecido a estas pessoas e por que motivo não procuraram os serviços de saúde, assumindo que não é exequível que tenha deixado de existir doença grave.
  3. Os Cuidados de Saúde Primários mantiveram sempre a missão de dar resposta a situações agudas e a agudizações de doenças crónicas. Em março, apresentaram uma diminuição de 32,89% das consultas presenciais realizadas nas unidades onde os utentes estavam inscritos e de 41,18% das visitas domiciliárias; em abril, observou-se uma diminuição acima de 70% para ambas as vertentes; em maio, a diminuição esteve acima de 60%; e, em junho, a quebra nas consultas presenciais foi de 43,69%, fixando-se nos 30,33% para as visitas domiciliárias.
    Confrontados com esta redução massiva, impõe-se questionar se as consultas não foram feitas por falta de solicitação, por recusa dos serviços e/ou pelas imposições do Ministério da Saúde. Assim como importa vacinar contra a guerrilha dos números, porque há sempre quem se preste à tarefa árdua de explicar que a redução de 3,8 milhões nas consultas presenciais foi contrabalançada pelo aumento de 2,9 milhões de consultas sem a presença do utente, no mesmo período. Sucede que, por maior que seja a sobrecarga causada nos profissionais, não é sério comparar uma consulta médica presencial com uma consulta por telefone, ou mesmo um pedido de receita por email.

Por outro lado, não podemos ceder ao corporativismo bacoco, ao ponto de achar que os profissionais de saúde fizeram e continuam a fazer tudo bem. O SNS realizou menos 3,8 milhões de consultas médicas presenciais nos Cuidados de Saúde Primários, menos 2,5 milhões de consultas nos hospitais e menos 101.140 mil cirurgias. Se isto não tiver qualquer impacto na mortalidade da população, então está na hora de pensar para que serve o Serviço Nacional de Saúde e os milhares de profissionais que nele trabalharam normalmente, até ao mês de março.

Analisando mais ao detalhe os números de cirurgias, verificamos uma quebra nos meses de março a junho de 49,3% para a cirurgia programada e de 15,4% para a cirurgias urgentes (menos 5150 cirurgias), em relação ao período homólogo, de acordo com os dados do Portal da Transparência do SNS.  Dentro deste leque de dados, um exemplo que se destaca à partida são os diferentes tipos de cancro. Nesse sentido, ao avaliar isoladamente o número global de cirurgias nos IPO de Coimbra, de Lisboa e do Porto, é penoso constatar que houve uma diminuição superior a 30% nos meses de março a maio, em comparação com igual período de 2019. Esta quebra fez-se também sentir na quantidade de primeiras consultas realizadas, facto que não será alheio à redução significativa do número de referenciações a partir dos médicos de família. Deixou de haver doentes oncológicos?

Acreditando que não, é lícito suspeitar que há casos por diagnosticar. Neste papel de deteção precoce de patologia oncológica, os cuidados de saúde primários têm um impacto preponderante. No mês de junho de 2020, os dados referentes aos rastreios dos cancros do colo uterino, da mama e do cólon e reto estavam ligeiramente abaixo dos registados em junho de 2019 (respetivamente, menos 36 mil citologias, menos 25 mil mamografias e menos 33 mil rastreios de cancro colorretal). Acontece que os exames que faltam para, pelo menos, igualarmos o ano 2019 no mês de dezembro, implicam um enorme esforço nesse sentido, que não deverá ser suspenso caso haja uma nova vaga da Covid-19. Falamos de um número de pessoas muito considerável e de rastreios que só estão a ser adotados porque salvam vidas. Inquieta, por isso, que a Liga Portuguesa Contra o Cancro tenho noticiado que o rastreio de Cancro da Mama, no Norte do país, só será retomado em setembro, apesar do baixo número de casos de Covid-19 na maioria dos concelhos desta região de saúde, desde maio.  Os meses necessários para preparar o rastreio (e não só) para o “novo normal” destoam do tempo que foi dado aos cidadãos para refazer a sua vida. Em julho, as pessoas já iam para o trabalho de transportes públicos, mas, aparentemente, só haverá condições de segurança para entrarem num contentor de rastreio, onde está um único técnico de saúde, em setembro. No fundo, é o mesmo padrão que se tem visto para tudo o resto, quando percebemos que é mais simples aglomerar pessoas num restaurante do que numa unidade de saúde onde, desejavelmente, os utentes são triados.

A questão de fundo mais relevante que podemos colocar, neste momento, é “o que vai acontecer no outono e no inverno?”

Suspenderemos os rastreios, os doentes crónicos continuarão com um seguimento abaixo do padrão habitual e os centros de saúde e os hospitais permanecerão abertos? Os soldados da linha da frente nesta guerra biológica vão ficar nas trincheiras, enquanto a população morre de doenças extra Covid-19, seja pela ausência de resposta ou pelo medo da procura?

Temos de aceitar que, pelo menos até haver vacina, vamos continuar a conviver com o vírus. Logo, o que faz sentido é ter serviços de saúde capazes de dar resposta aos doentes e de divergir de uma rota Covid-19 dependente, com profissionais agrilhoados pelos números diários que de nada servem porque em nada resultam. Substituindo a propaganda pela estratégia, é possível usar “os números da pandemia” na definição de níveis de risco inteligíveis para as diferentes áreas do país, com limitações proporcionais à realidade objetivada. De outro modo, arriscamo-nos (caso já não esteja a acontecer) a que as pessoas não morram com Covid-19, mas somente por causa da Covid-19 sem nunca terem tido Covid-19.