No passado dia 5 de Janeiro, 90.04% do consumo energético do país foi abastecido por centrais térmicas e centrais hidroeléctricas1. O consumo de gás natural e de electricidade atingiu um novo recorde de 9.546 MW e 14.862 MW, respectivamente. O consumo diário total chegou a 298,9 GWh, superando o anterior máximo de 269,9 GWh em 20172. Estes acontecimentos ocorrem na sequência de um registo de temperaturas francamente inferior à média histórica para esta altura do ano.

Um cenário semelhante do ponto de vista energético verificou-se também durante o Verão de 2017, quando foi batido o recorde no consumo de gás natural em Portugal com todas as centrais a funcionarem em pleno durante algumas horas. Nesse dia, a produção das centrais térmicas — gás natural, carvão e cogeração — atingiu os 121 GWh3. Um recorde agora batido, mas que se deveu a um ano anormalmente seco, que interferiu com a produção do sistema hidroeléctrico, aliado à necessidade de abastecer o consumo para arrefecimento. Espera-se que esse consumo continue a subir, acompanhando a temperatura média durante os próximos anos4.

Estes factos podem passar despercebidos ao observador comum, mas transformam-se num autêntico caso de estudo no que toca às políticas de transição energética que todos devíamos encarar como sendo de fulcral importância para o país e que são o espelho daquele que é um dos maiores desafios tecnológicos do momento. Enquanto, por um lado, no período do Natal, Portugal bateu o seu recorde de horas seguidas sem produzir energia térmica convencional (111h)5, o recorde de 5 de janeiro vai em sentido contrário e reitera a importância da complementaridade dos vários tipos de produção no mix energético do país.

Muitos se têm desdobrado em exigências imediatas contra a importância da energia térmica convencional e das Centrais de Ciclo Combinado no futuro desse leque de fontes energéticas. Estas exigências são válidas e positivas, mas apenas se acompanhadas do devido suporte científico, tecnológico e de engenharia. E esse suporte, baseado em dias como o de 5 de janeiro, comprova que não é possível ter um sistema electroprodutor exclusivamente dependente de energias renováveis, pelo menos até 2050.

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Isto deve-se muito ao facto de Portugal ter um sistema caracterizado por um grande peso da componente hídrica, que pode ter uma discrepância enorme na produção interanual. As restantes renováveis tiveram um parco contributo no período que agora atravessamos (16,3% no dia 5 de janeiro). Por este motivo, há que refletir sobre o impacto que um ano com um menor índice de capacidade das centrais hidráulicas teria no rácio procura/oferta, dado que o capability index das hidráulicas pode variar com um factor de até 3 vezes.

É certo que é urgente apostar no cumprimento das metas do Acordo de Paris, que, no caso concreto de Portugal, se traduz num máximo de 11,9 milhões de toneladas de CO2 equivalente, representando uma redução de 80% face às emissões actuais, das quais cerca de 70% têm origem no setor energético6. Este desafio exigente torna óbvia a necessidade de diversificar as opções, mas garantindo que o back-up da energia térmica convencional se mantém no mix energético até que seja tecnológica e financeiramente possível substitui-lo. A aproximação a estas metas só é possível com uma transição gradual e sustentada na tecnologia actual, baseada em combustíveis fósseis como o gás natural, e que permite garantir a carga basilar que contraria a intermitência das renováveis.

Para atingir estas metas ainda mais rapidamente, é urgente entender a dimensão da dificuldade da mudança deste paradigma e reunir o investimento público e privado, académico e empresarial em torno do desenvolvimento viável de alternativas, como a energia das ondas, das marés, energia geotérmica e gases de síntese. Nesse processo, é ainda urgente combater as tentativas de excluir as petrolíferas da solução. São precisamente elas que devem estar na frente da transição, dada a importância do seu know-how, infraestruturas e capacidade de investimento.

Num estudo da APREN – Associação Portuguesa de Energias Renováveis – publicado em 2018, é a própria entidade que apresenta a necessidade de manter a utilização do gás natural com captura de carbono (CCS) na equação para contrabalançar as renováveis7. Este tipo de soluções só se compõe com empresas tipicamente petrolíferas, algumas das quais começam a diversificar-se fortemente (afigurando-se, mesmo, como os maiores players de energia fotovoltaica da Península Ibérica). Esta dedicação à causa foi, aliás, reiterada em dezembro de 2020, altura em que vários gigantes mundiais do sector, como a BP, Eni, Equinor, Occidental, Repsol, Royal Dutch Shell, Total e até mesmo a Galp, se juntaram para assinar um pacto de cooperação que visa reunir esforços para acelerar o contributo da indústria petrolífera para os objetivos do já referido Acordo de Paris, ao reduzir as emissões de gases de efeito de estufa, suportar a criação de carbon sinks, entre outras medidas8.

Todas estas peças são importantes para construir um puzzle que garanta e melhore a qualidade de vida das populações enquanto acelera a transição para o sistema energético do futuro, com todas as tecnologias de produção mencionadas, aliadas a sistemas de armazenagem baseados em hidrogénio e albufeiras com tecnologia de reversibilidade, bem como um importante investimento em medidas de gestão eficiente do consumo e da criação de redes que permitam, por exemplo, a utilização inteligente da bateria dos eléctricos ligados à rede.

Em oposição, exigências imediatas inatingíveis contra os combustíveis fósseis poderiam, noutras circunstâncias, estar mesmo na origem de uma crise energética – deixando metade de Portugal não só às escuras, como o Ministro do Ambiente João Matos Fernandes referiu em 2019, como também ao frio. Sendo Portugal, simultaneamente, um dos países da União Europeia em que mais cidadãos declaram não ter capacidade financeira para manter a sua casa aquecida de forma adequada (18,9%), e um dos países em que o preço da electricidade é mais elevado9, exigir a adopção generalizada de tecnologias imaturas mais depressa do que o mercado permite, sem um back-up de combustíveis fósseis, só iria dificultar ainda mais esta problemática.

Mais importante, é combatermos a desinformação e a tentativa de doutrinação da população com discursos desprovidos de soluções do ponto de vista técnico e muitas vezes baseados em agendas políticas ocultas, em que a sustentabilidade do planeta é enviada para segundo plano, ficando refém de uma determinada cegueira ideológica que pretende impedir que a iniciativa privada e o ambientalismo convivam de forma saudável. Nesse caso ninguém ganha, muito menos o planeta.

Créditos a Markus Doepfert (IST) e ao Professor Rui Castro (INESC-ID/IST) pelo trabalho desenvolvido em ​Techno-economic optimization of a 100% renewable energy system in 2050 for countries with high shares of hydropower: The case of Portugal. E​lsevier, 2020.

[1] REN, ​Centro de Informação.​ Consultado para a data de 05-01-2021.
[2] REN, ​”Baixas temperaturas de terça-feira levam consumo de gás natural e eletricidade para novos máximos”. 0​7-01-2021
[3] Ana Suspiro, Observador, ​”Centrais a todo o gás. Produção não renovável bate recorde por causa da seca”. ​18-07-2017
[4] Marta J.N. Oliveira Panao, ​Revisiting cooling energy requirements of residential buildings in Portugal in light of climate change,​ EnergyBuild. 76 (2014) 354-362.
[5] Ana B. Oliveira, Jornal de Negócios, ​”Natal ‘oferece’ recorde de horas sem produzir energia térmica convencional​”. 31-12-2020
[6] APA, ​Portuguese National Inventory Report on Greenhouse Gases, 1990 – 2015​, Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Amadora, 2017. Technical report.
[7] CENSE, Faculdade de Ciências e Tecnologia – Universidade de Nova de Lisboa, APREN, ​Renewable Electricity in the Portuguese Energy System until 2050​, Associação de Energias Renováveis (APREN), Lisbon, 2018. Technical report.
[8] Galp, Press Release, ​Leading energy companies announce transition principles​, Dezembro de 2020.
[9] Ana Horta, Público, ​”Pobreza energética: porque está Portugal entre os piores da UE?”​ 13-12-2020.