Foi Agostinho da Silva que nos brindou com uma frase que me parece ser particularmente admirável. “Temos, sobretudo, de aprender duas coisas: aprender o extraordinário que é o mundo e aprender a ser bastante largo por dentro, para o mundo todo poder entrar”. Quando queremos refletir acerca daquilo de que os artistas, que são parte integrante do tecido social, precisam, especialmente numa altura em que vemos a terrível pandemia a alterar o paradigma, devemos lembrar-nos destas palavras.

É sempre interessante contemplar a relação que temos com o mundo exterior, ou seja, com a natureza, da qual recebemos fantásticas características, como o corpo, a inteligência e a capacidade criativa. Simultaneamente, devemos também perceber o (nosso) mundo interior e fazê-lo crescer, ou, pegando nas palavras de Agostinho da Silva, alargá-lo. Isto é especialmente crucial para os artistas, que devem ter esta ideia em mente e começar um processo de autoaprendizagem, percebendo, ao mesmo tempo, que as próprias artes funcionam a partir de dentro. Além disso, é importante que os artistas não se esqueçam de que a beleza, e também a sua antítese, devem fazer parte da sua pesquisa e da capacidade de verem, ouvirem e sentirem, que são características tão portuguesas e tão relevantes.

Por outro lado, considero que a própria sociedade tem de começar a olhar para os artistas de uma outra forma e esquecer a vertente mais romântica, ou até estereotipada, associada aos mesmos. A vida dos artistas é dedicada, de alguma forma, a aprender e a procurar soluções na relação entre si e os outros. Enquanto artista, gosto de relembrar quem me rodeia de que a Cultura, da qual somos herdeiros, é algo que se constrói e que se vai, de certa forma, movendo. Por isso, devemos, hoje, criar em conjunto uma Cultura diferente, uma outra forma de estar e, especialmente, transformar a maneira como nos relacionamos uns com os outros.

Recordo-me, algumas vezes, de um momento muito corriqueiro pelo qual passei e que me fez pensar sobre um aspeto importante. Olhei para duas garrafas de água, que peguei e trouxe para a minha secretária e lembrei-me de África onde por vezes tenho trabalhado. Estas garrafas de água que tão comuns são em Portugal, são coisas raras e dispendiosas noutros lugares. Nem todos têm acesso a esses bens essenciais como nós aqui.  Do mesmo modo, a cultura e as artes como água são coisas raras e ao mesmo tempo são elementos banais e essenciais à vida. Enquanto subia as escadas para me sentar ao computador apercebi-me de que a água é um bem que não chega a toda a gente. Acontece o mesmo com a cultura. As Artes e a Cultura têm a especial missão de refletir sobre cada detalhe relativo a esta desigualdade, e a tantas outras, e concluir acerca da melhor forma de encontrar soluções para tornar a vida mais “larga”, mais aberta. O trabalho artístico deve ser uma zona de contacto com a beleza, com o transcendente e com outras formas de vida e de costumes.

Do que precisam, então, os artistas? Precisam de instrumentos, ou de recursos, e de compreensão por parte da sociedade em geral, como os governantes, os jornalistas, os espetadores e tantas outras partes integrantes da mesma. Uma compreensão que é exigência. Deve haver uma proximidade e um diálogo constante entre os artistas e a sociedade, para que todos se apercebam de que a comunidade não faz sentido sem a Cultura. Sem as Artes e sem a criatividade a elas associada, o corpo social perde uma das suas funções mais importantes, que é abrir o mundo e partilhar toda esta fascinante beleza. Uma compreensão que é por isso coragem colectiva e partilhada. Um dar as mãos em face do medo e do receio que se antepõe à vida e às suas múltiplas expressões e diversidade.

É preciso coragem para continuar a apostar na Cultura e nos artistas, hoje em dia. Ir ver um espetáculo, como um teatro ou um concerto, implica uma bravura muito grande, pois existe sempre o medo de causar mal-estar nos outros. Hoje ainda mais, porque estar em conjunto em face do outro é sinónimo de risco. Mas também de podermos criar uma imunidade colectiva. A vida é isso mesmo, a criação de sucessivas imunidades que nos alargam as possibilidades de sermos mais humanos. De sermos e termos mais humanidade. É preciso relembrarmo-nos de que as Artes contribuem para a construção do ser humano e esta interação deve ser feita face a face. Os artistas precisam de contar histórias, e essas histórias devem ser ouvidas por alguém que esteja disponível para alargar o corpo e interiorizar o mundo exterior. Cada história é um ser que nos abre caminhos entre o mundo exterior e o nosso desconhecido interior.

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