Com o fim da crispação parece que vivemos num país diferente, o tal tempo novo de que alguns falam, só que, infelizmente, os problemas não desapareceram por magia. Afinal, a Europa, da qual tanto dependemos, ainda não mudou assim tanto.

E se dúvidas houvesse acerca dessa dependência, a presença de Mario Draghi, Governador do Banco Central Europeu (único poder real na União Europeia), esta semana numa reunião do nosso Conselho de Estado, aí estará para as dissipar.

Aliás, o professor Adriano Moreira, novo membro deste mesmo Conselho, com a sua sabedoria foi claro e, ao mesmo tempo, subtil ao afirmar que esta reunião é mais uma audiência para ouvir as pessoas de que o país depende.

Assim, quando falamos sobre a viabilidade da execução do novo orçamento do Estado. Sempre que damos palpites sobre o novo figurino do Plano Nacional de Reformas ou sobre o próximo Programa de Estabilidade e Crescimento, é dessa mesma Europa que falamos. E é essa Europa dos mercados, das finanças, das crises bancárias, do endividamento das famílias e das empresas, que me faz recordar a velha história da cigarra e da formiga.

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Na verdade, apesar do muito que se tem escrito nos últimos anos sobre a crise da zona euro, bem como da chamada crise das periferias e da sua dívida soberana (agravada agora com o problema do refugiados, como se pode ver pelo crescimento na Alemanha do novo partido, AfD, basicamente, contra a imigração), a questão resume-se, com alguma simplicidade, a um confronto entre os que poupam no presente para garantir o futuro e os que gastam hoje, hipotecando o dia de amanhã.

No fundo, estamos perante a noção sedutora de que os ciclos económicos não passam de jogos de moralidade, acabando as crises económicas por ser explicadas como uma espécie de purgante após os excessos de um qualquer período excessivamente expansionista.

Por outras palavras, estar-se-á perante um confronto entre aqueles, do centro e norte da Europa, que usam a parcimónia, a poupança, como regra de vida e os do sul, perdulários, pródigos, que sacrificam o futuro em nome de um presente mais radioso.

Ao norte, as formigas, no sul, as cigarras. Sendo que, tal como na moral da história, as formigas estarão certas e as cigarras erradas, devendo o caminho da Europa, e especialmente o sucesso da zona euro, levar a que todos sejamos formigas.

É aqui que entra em jogo a falácia da composição, nos termos da qual o que é válido para um pode não ser válido para todos. Uma falácia que consiste em afirmar que o todo possui a mesma propriedade das partes.

Só que, ao contrário do sugerido pela referida falácia, a poupança, sendo boa em si e quando praticada por alguns agentes ou países, pode ser contraproducente a uma escala global, envolvendo os diversos agentes no mercado relevante.

Ou seja e voltando à nossa história, uma das evidências – apesar de contra-intuitiva é certo – de uma análise económica agregada é a de que uma economia perde globalmente, tanto no caso de só ser composta por formigas, como no caso de ser só composta por cigarras, pois a prosperidade e o crescimento exigem a presença, em cada momento e de forma assimétrica, de uma combinação equilibrada de agentes que poupem mais e de outros agentes que consumam mais e poupem menos (já J. M. Keynes, na sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, publicada em 1930, falava no problema da assimetria entre poupança e investimento e no que designou por eutanásia do rentier).

No fundo, uma economia aberta, integrada, interdependente, com baixos custos de transação, precisa de conjugar os que apostam numa clara preferência pelo presente (as cigarras) e os que apostam no diferimento do seu ganho ou prazer imediato (as formigas). E isto será assim, quer estamos no interior de um país quer estejamos numa zona económica integrada, como é a zona euro, ou, em última instância, quando se trate do próprio mundo, plano e globalizado.

Vejamos apenas um exemplo.

Se os portugueses não consumirem Audis ou Bimbys, os alemães não beneficiam, não podem poupar, o resultado gerado pela produção e venda desses equipamentos.

Por outro lado, se os alemães não preferirem o nosso sol nas suas férias, os portugueses não conseguirão poupar os ganhos com o turismo, decorrentes dos consumos imediatos de verão, desses mesmos alemães (sem qualquer especial embirração com a Alemanha).

Atenção, pois, às falácias como a da composição, com que nos afagam o ego e tentam vender soluções económicas simples, pois o futuro da Europa não pode estar apenas nas formigas.

Parafraseando Jurgen Habermas, a Europa só se salvará como um todo se souber cooperar de modo a que certos países aceitem, no seu próprio interesse de longo prazo, os efeitos redistributivos que a curto prazo só lhes trazem aparentes desvantagens.

Ou, dito de outro modo, se souber construir um caminho coerente para um federalismo financeiro e fiscal, tal como o fizeram, quer a Alemanha quer os Estados Unidos da América e que hoje constitui a raiz do seu sucesso económico e social.

E agora que se avizinha mais um Semestre Europeu (eufemismo para controlo e avaliação dos orçamentos nacionais por parte da União: neste caso por parte do euro-grupo), nada como lembrar aos nossos parceiros em Bruxelas ou Frankfurt (ou ao senhor Draghi no tão inovador Conselho de Estado desta semana), a velha história da cigarra e da formiga, qual metáfora de uma Europa economicamente de vistas curtas e reiteradamente assimétrica.

Em suma, não nos basta o espírito positivo, a boa vontade ou a tal ausência de crispação, naturalmente importantes para restaurar a confiança na economia. Será preciso também que a Europa se mova!

Professor universitário