A semana passada, a imprensa decidiu que tinha acabado uma década, e tratou de lhe fazer o balanço. Não foi animador. A crer nas opiniões publicadas, os “anos dez” deste século teriam deixado tudo em risco: os empregos, com a inteligência artificial; a igualdade, com a acumulação de riqueza por uma minoria; as democracias, com Donald Trump; e o planeta, com as alterações climáticas. Não vale a pena lembrar que para a maioria da população do mundo, na Ásia, a história da segunda década do século XXI é a da libertação de uma pobreza a que, ainda há uns poucos de anos, parecia definitivamente condenada. Mas quem quer ver o mundo do ponto de vista de um camponês asiático? Entre os sábios ocidentais, a moda é o toque a finados: está tudo em colapso. Os franceses até já têm uma etiqueta para isto: “colapsologia”.

Tem sido este, aliás, o tom dominante dos últimos vinte anos. O século XXI começou com a ameaça do “millenium bug”. Ainda se lembram? No primeiro minuto do ano 2000, os sistemas informáticos não reconheceriam o novo milénio e fariam explodir o planeta. O facto de o planeta não ter explodido não fez desanimar os niilistas. Entre 2001 e 2003, tiveram as operações americanas no Afeganistão e no Iraque para imaginarem que a Terceira Guerra Mundial estava ao virar da esquina. Em 2008, a crise bancária serviu-lhes para anunciarem o fim das classes médias, a miséria e a fome – uma nova Grande Depressão, como em 1929. Em 2016, foi a eleição de Donald Trump: Hitler voltara com uma cabeleira loura, para liquidar a democracia como na Alemanha em 1933. Entretanto, há o aquecimento global, a prometer extinguir a vida no planeta, como no relato bíblico do Dilúvio.

Donde vem esta mania milenarista? Não devemos descontar a necessidade de sobrevivência dos meios de comunicação, numa época de caça aos clicks. Nunca ninguém fez grandes tiragens a dizer que tudo corre normalmente. Mas esta explicação não basta. É preciso reparar no que, através de editoriais e comentários, é posto em causa: é sempre a democracia representativa, a economia de mercado, ou a influência ocidental no mundo. O milenarismo destas duas primeiras décadas do século XXI tem origens antigas, mas tem também uma origem próxima: a queda do muro de Berlim em 1989. Depois do descrédito do comunismo, o alvoroço apocalíptico à volta da guerra do Iraque, da crise de 2008 ou da eleição de Trump tem servido aos inimigos da democracia e da economia de mercado para reconstruírem a sua frente de ataque ao que chamam “capitalismo”.

Já o marxismo previa o empobrecimento maciço da classe operária, a quem os “capitalistas”, depois de privarem da propriedade dos meios de produção, iriam negar os meios de subsistência, forçando finalmente os trabalhadores à revolução. A história não foi bondosa com estes bandarras. Mas os inimigos socialistas do Estado de Direito democrático e da economia de mercado não desistiram. Não se atrevem a repetir as previsões do velho Marx, mas nem por isso abandonaram o seu milenarismo. Ei-los, agora, promotores de todos os catastrofismos. Os EUA beliscam uma ditadura do Médio oriente? É a Terceira Guerra Mundial. Um banco foi à falência? Vem aí outra Grande Depressão. Os eleitores escolheram alguém de que eles não gostam? Hitler regressou. Chove ou faz sol? É o começo da aniquilação bíblica da vida na terra. Para evitar todos esses desastres, o milenarismo socialista tem um remédio muito simples: bastaria renunciar ao sistema representativo, que permite a eleição de Trump, e ao “capitalismo”, que explora os combustíveis fósseis. Mas essa renúncia ao mercado e à democracia seria a verdadeira catástrofe que, ontem como hoje, importa evitar.

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