Na década de 1980, dando seguimento ao trabalho pioneiro de Philip Curtin, o historiador David Eltis, nascido no Reino Unido, começou a fazer um levantamento exaustivo do tráfico transatlântico de escravos: pontos de embarque na costa de África, número de transportados, taxas de mortalidade durante a travessia do Atlântico, zonas de desembarque e número de desembarcados nas Américas, etc. Depois, com a colaboração de David Richardson e de outros colegas, Eltis ampliou e aprofundou esse trabalho inicial e construiu uma extensa e importante base de dados — a Slave Trade Database — que faz, de certa forma, a radiografia muito completa do comércio negreiro e que está disponível online, de forma que qualquer pessoa a ela poderá aceder.

Em Portugal a esquerda woke tem feito um uso recorrente dessa base de dados a fim de fundamentar os seus pontos de vista, procurando, por seu intermédio, dar uma chancela de credibilidade “científica” e “histórica” a discursos e raciocínios que são, fundamentalmente, políticos e ideológicos. Todavia, para usar com rigor a Slave Trade Database é aconselhável ter os olhos e o espírito abertos, coisas que os opinadores da esquerda woke geralmente não têm. Por isso caem frequentemente em erro por desatenção, por não compreenderem integralmente aquilo que estão a ler, ou por razões menos inocentes que me abstenho de qualificar.

É cansativo ter de corrigir repetidamente a forma abusiva e desatenta como Fernanda Câncio, Daniel Oliveira e vários outros têm recorrido a essa base de dados, procurando atirar para o espaço mediático números bombásticos e “culpabilizadores” de Portugal, mas é importante fazê-lo para tentar evitar que mentiras muitas vezes repetidas acabem por se tornar verdades aos olhos da opinião pública.

Tornou-se, por isso, inevitável fazer algumas considerações sobre o mais recente texto de Cristina Roldão nas páginas do Público. De facto, nesse artigo, a socióloga e activista afirmou, e cito-a, que “Portugal foi responsável por cerca de 50% do total do tráfico transatlântico de 12 milhões de africanos”. Poderá haver quem ache estranho que, após cinco anos de debate público sobre a temática do tráfico de escravos e da escravidão, ainda haja pessoas pretensamente informadas que afirmem coisas destas. Se estivéssemos a debater história a persistência de tais erros seria certamente muito desanimadora. Mas este debate não é sobre história pois aquilo que move os activistas woke não é o conhecimento rigoroso do passado, mas sim a imposição de uma ideologia e o atingimento de metas políticas e, nesse campo, as distorções dos factos e da verdade são, mesmo quando involuntárias, moeda corrente.

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É o que sucede neste caso. Eu acredito — é a hipótese mais benigna — que Cristina Roldão não esteja de má-fé e seja apenas distraída. É que durante os cinco anos de debate mostrou-se por diversas vezes que esses quantitativos, esses supostos 50%, estavam errados e resultavam de um grosseiro erro de leitura da Slave Trade Database. De facto, na ânsia de culpabilizarem Portugal, de aumentarem as suas “culpas”, os activistas woke responsabilizam o país não apenas pelos seus actos e políticas, mas também pelos do Brasil (que, como sabemos, a partir de 1822-25 deixou de ser colónia portuguesa e se tornou um país independente). Como qualquer leitor que não tenha o cérebro e o coração infectados pelo vírus do wokismo facilmente perceberá, Portugal não pode ser historicamente responsabilizado por medidas que um outro país, ainda que ex-colónia sua, tomou ou deixou de tomar sobre esta ou qualquer outra matéria, da mesma forma que os governos de Lisboa posteriores a 1975 não podem ser responsabilizados pelas opções políticas de Luanda ou de Maputo.

Claro que para ser justo há que reconhecer que na base da eventual distração de Cristina Roldão, está, também, uma particularidade ou viés da Slave Trade Database, em que a socióloga se apoiou para fazer a desatenta afirmação que fez. Efectivamente, os criadores daquela base de dados decidiram agregar os quantitativos de Portugal e do Brasil. Também agregaram os quantitativos da Espanha e do Uruguai. Mas quando chegaram aos quantitativos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América seguiram outro critério e resolveram desagregá-los. Nas tabelas esses dois países aparecem em duas colunas separadas, ao contrário do que sucede com Portugal e Brasil — ou Espanha e Uruguai — que surgem amalgamados numa coluna só, ainda que nela esteja referido que se trata do somatório de dois países. Assim, se os quantitativos portugueses e espanhóis estão inflacionados por inclusão dos valores relativos às suas ex-colónias, os dos britânicos estão comparativamente subavaliados porque a eles se subtraíram os números da importação norte-americana, tanto no tempo em que essas regiões ainda eram colónias suas como naquele em que já constituíam uma nação independente. Enfim,  inconsistências de método que não cabe aqui analisar, mas que podem induzir em erro os activistas mais fanáticos ou mais distraídos, e que constituem, neste último caso, uma circunstância atenuante para o eventual engano de Cristina Roldão e de outras pessoas de idêntica militância e área política.

Em suma, tudo somado e devidamente expurgado das agregações enviezadas da Slave Trade Database, Portugal foi responsável não pelos 50% do tráfico transatlântico que Cristina Roldão lhe quis atribuir, mas por 35%, a Grã-Bretanha por 27%, a França por 11%, o Brasil (de 1825 em diante) por 10,7%, etc. Esta é a verdade histórica, ou seja, aquilo que o nível actual do conhecimento histórico nos permite afirmar (e que qualquer pessoa que queira consultar aquela base de dados e fazer as contas poderá confirmar). A outra, a de Cristina Roldão, é a versão “alternativa” da história, a versão com adulterações grosseiras, sem ponta de rigor, com números martelados, que a esquerda woke quer impor nas nossas cabeças e no nosso ensino secundário.