Uma família em isolamento, dia 24

“Não me sentia limpa. Não me sentia segura. Primeiro era um desconforto. Depois passei a ficar ansiosa cada vez que chegava a casa. Deixava as minhas coisas todas à porta, numa zona segura, ia logo tomar banho… Mas não adiantava. Aquilo não passava. Então comecei a afastar-me.”

Irina lembra-se bem daqueles primeiros dias. De deixar de dar beijos aos pais. De começar a sentar-se no sofá, mais afastada. Das refeições com uma distância de segurança. E de como nada daquilo parecia resultar para a sensação que ia crescendo. Passou a fechar-se no quarto. Saia para comer e pouco mais. Já não via televisão nem jogava jogos em família. Mas aquilo continuava a não passar. Vieram as noites mal dormidas. O cansaço acumulado. E a ansiedade a crescer. Onde quer que tocasse deixava mais um pouco de medo. Só ela o sentia mas era cada vez maior.

Até que decidiu: tinha de sair de casa.

Irina é enfermeira e, devido ao surto de coronavírus, seguiu o exemplo de muitos profissionais de saúde que resolveram isolar-se das pessoas de quem mais gostam para não os colocar em perigo. Trabalha numa unidade que, pontualmente, recebe pacientes com Covid-19 num hospital da grande Lisboa que prefere não revelar (é nova, é o primeiro emprego, nunca tinha falado com um jornalista em contexto profissional, tem receio, não quer melindrar, não quer arriscar, e para desconforto já basta o que tem passado). Ainda que os doentes sejam testados, ainda que ela adopte os procedimentos de segurança, ainda que use todo o equipamento que a pode proteger, o risco está lá. Com ela. A toda a hora. E vinha com ela para casa.

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A ideia de poder estar infectada sem sintomas e, dessa forma, contaminar a família era demasiado angustiante para continuar. Enquanto estivesse debaixo do mesmo tecto dos que mais ama, estava a coloca-los em perigo.

Os pais compreenderam a decisão – “embora a minha mãe estivesse em negação durante algum tempo” –, a irmã de 14 anos também, apesar de lhe ter perguntado se podia ir com ela para a casa onde vive sozinha há uma semana, disponibilizada pela plataforma airbnb para profissionais de saúde que precisem de se isolar. Há um mês que as duas não se abraçam e esta ausência do contacto físico está a custar-lhe. Fala com colegas, faz chamadas vídeo com amigos e com a família (com quem já jantou várias vezes em simultâneo, através do écran do telemóvel), sabe que está apoiada. Mas falta-lhe o colo da mãe. A refeição quente quando chega. A pessoa de carne e osso a poucos centímetros.

Irina tem 22 anos, nunca tinha vivido longe da asa da família. “Não era assim que eu imaginava que seria quando saísse de casa dos meus pais.”

Paulaestá há mais tempo do que Irina em isolamento. Já vão 18 dias a ver o filho através de um telemóvel, sem lhe poder tocar, sem o cheirar, sem lhe afagar o cabelo ou escolher a roupa que o rapaz de 7 anos vai vestir.

“Custa-me muito pensar que deixei o Filipe com o meu marido a tratar de tudo”, diz enquanto respira fundo. “Sinto que os deixei. É uma espécie de abandono. Eu sei que estão bem, sei que eles compreendem, sinto-me apoiada nesta decisão. Mas eles estão lá e eu estou aqui.”

“Aqui” é a casa dos sogros, para onde a anestesista de 45 anos se mudou, depois de uma semana a preparar a família. “Lá” é a sua casa, onde agora vivem também os avós do pequeno Filipe. É perto, suficientemente perto para ficar no caminho que faz quando deixa a unidade de queimados do Hospital de São João, no Porto, onde trabalha há 18 anos. Mas ao mesmo tempo é tão longe. Todos os dias fala com o filho, ambos sozinhos, mas não é mesma coisa. “Se estiver mais gente, ele não fala da mesma maneira. Precisa de sentir que só nós é que nos ouvimos um ao outro.” Houve apenas um dia em que falharam o habitual, o rapaz esqueceu-se, estava entretido a brincar e os pais não quiseram fazer daquilo uma obrigação.

Paula protelou ao máximo a decisão de sair de casa. “Hoje ainda posso tocar. Hoje ainda posso agarrar.” Ia pensando nisso diariamente, mas sabia que chegaria o dia em que iria contactar um doente que testasse positivo. E a partir daí seria uma incógnita. Para ela e para os que ama. Preparou a família, foi avisando que aquilo iria acontecer, tratou da logística. “Tive de os preparar a eles, não a mim.”

A festa dos dez anos de casamento, no início de junho, já está adiada. As férias marcadas para o final desse mês também. E o resto logo se verá como corre. “Eu sou profissional de saúde. O meu lugar é com as pessoas que precisam de mim. Além da minha família, os doentes.” Por isso ofereceu-se também como voluntária para o hospital de missão montado no Pavilhão Rosa Mota. Mas não tens já ansiedade e trabalho que chegue no dia a dia, pergunto-lhe. “Tenho. Mas são doentes. E eu sou médica.”

Sente falta do toque, da pele, de sentir as pessoas com quem vive. E sente falta de se sentar ao fim do dia a conversar com o marido, “naquela meia hora que é nossa”, depois de jantar, antes de o miúdo ir para a cama e enquanto vê desenhos animados. Não é a cama, o sofá, o pão na torradeira de casa ou a banheira a que está habituada. O que Paula sente mais falta agora, e há 18 dias que não tem, é agarrar o filho e conversar com o marido naquele ritual.

Pedro concorda. Garante que não combinaram, que não fazia ideia que Paula tinha dito aquilo, sequer que também pensava da mesma maneira que ele. Mas quando lhe pergunto do que sente mais falta, por estes dias, para lá das saudades e da dinâmica familiar, para lá do jeito que a mulher tem e a ele lhe falta para trabalhos manuais com o rapaz, para lá da presença dela pela casa, aquilo é o que lhe sai: “os momentos que temos depois de jantarmos e antes de deitarmos o Filipe. É isso que me custa mais não ter. E não sei quando vou ter novamente.”

De vez em quando Pedro, que não está a trabalhar por estes dias para assistência à família, cozinha para a mulher e vai-lhe levar o almoço ou o jantar. Toca à campainha, pousa os tupperwares no chão e ficam ali, a quatro ou cinco metros de distância um do outro, a conversar um pouco. Sem saberem quando vão quebrar a distância de segurança.

Vítortambém já fez isso várias vezes. Três vezes. Em duas ocasiões foi às compras e levou-as a casa. A mulher e as duas filhas ficaram ali à porta, longe do pai e do marido, conversaram um pouco, falaram da vida e da logística e ele foi embora. Na terceira vez foi cantar os parabéns no dia em que a filha mais velha fez dez anos. A voz embargada devia sair-lhe abafada pela máscara e o eco da escada talvez tenha alertado os vizinhos. Mas não se aproximou.

Há mais de três semanas que não se aproxima. Há mais de três semanas que este enfermeiro de 50 anos está longe da mulher e das filhas. Há mais de três semanas que joga dominó ou xadrez com a mais velha através do telemóvel (em vídeo, mesmo, filmando o tabuleiro). Há mais de três semanas que tenta ajudar à distância, acalmando a ansiedade, o stress e a preocupação de uma mãe em teletrabalho numa profissão muito exigente, com duas crianças em casa – e a ponderar, até, recorrer a uma baixa para não cair para o lado, porque se sente a chegar ao limite. Há mais de três semanas que Vítor está longe de tudo, numa casa que o sogro arrenda e que agora por acaso estava vazia, perto do hospital de Lisboa onde trabalha (que também prefere não revelar porque ainda não contou ao chefe que está em isolamento e quer ser ele a fazê-lo).

“Há dias em que me sinto muito angustiado. Um medo enorme que se mistura com alguma tristeza. Eu consigo estar sozinho, não me aborreço e não deprimo, mas agora é diferente. Agora posso ficar doente. E depois não posso ajudar a minha mulher, que já está tão cansada. Tenho saudades delas, lá em casa, mas o medo é quase maior.” Vítor não sabe quando poderá voltar. “Não quero pensar muito nisso, mas se calhar vai demorar um pouco. Gostaria que fosse em junho, mas não sei. Talvez julho.”

Conheço a mãe da enfermeira Irina de toda a vida. Não me lembro de não a conhecer. Conheço o marido da anestesista Paula desde a escola primária e é muito amigo da minha mulher – que trabalhou com o enfermeiro Vítor durante mais de dez anos. São pessoas próximas, cujas histórias se cruzam com a nossa. Com quem falamos de vez em quando. E que ajudam dezenas, centenas de pessoas dia após dia, semana após semana.

Ontem contei às minhas filhas a história destas pessoas. Durante alguns minutos, pelo menos – e aposto que a ideia terá ficado lá – conseguiram perceber a sorte que é ter um pai e uma mãe que podem ver e tocar todos os dias. Os pais e a irmã da Irina, o marido e o filho da Paula e a mulher e as filhas do Vítor não podem dizer o mesmo.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

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Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

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Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste