No Verão de 2020, de forma mais ou menos ingénua, creio ter havido uma certa esperança coletiva de que, volvido um ano, o vocábulo “pandemia” deixasse de ser a palavra de ordem. Infelizmente, assim não ocorreu. Mês após mês, semana após semana, dia após dia, não há meio de comunicação social que não destaque tão funesto assunto. Não estranho, nem condeno. Apenas fico sobremaneira apreensivo com a exígua atenção que tem sido concedida a uma significativa plêiade de incontornáveis efemérides nacionais. Vejamos.

Ainda que com alguma controvérsia, desde logo pela escassa e peculiar ligação que teve com o reino português, o quinto centenário sobre a viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, projetado para o quadriénio 2019-2022, tem sido alvo de múltiplas iniciativas culturais. Conferências, concertos, exposições, publicações de obras literárias eruditas, romanceadas e infantis têm sido, felizmente, frequentes. De igual modo, o quinto centenário sobre a morte de D. Manuel I, de forma merecida, não tem passado à margem da sociedade civil. Trata-se, indubitavelmente, de uma personagem ímpar na historiografia nacional que, nas palavras do poeta maior, exercitou “a suma alteza”. Ainda relacionadas com “O Venturoso”, de forma mais tímida, mesmo no mundo dos jushistoriadores, têm sido as iniciativas realizadas para rememorar a versão final das singulares Ordenações Manuelinas: principal e oficial compilação legislativa do reino que, publicada em 1521, não fora alheia aos intentos magnificentes que o monarca tivera manifestado em vida.

De certa forma à margem dos media e, consequentemente, da sociedade (são de louvar, por isso, algumas iniciativas que vão despontando em plataformas mais especializadas), julgo encontrar-se o bicentenário das primeiras Cortes Constituintes, das quais emergiram as Bases da Constituição, a Constituição de 1822 (o nosso primeiro código de direito público que consagrou a liberdade de imprensa) e a extinção do “tão abominável” Tribunal do Santo Ofício da Inquisição.

Num tempo em que parece inexistir tudo o que não figura nos meios de comunicação social, cumpre reiterar, nesta sede, essas factualidades tão extraordinárias. Não se trata, apenas, de um dever de memória, mas de uma premente necessidade de consciencialização pública das conquistas conducentes a edifícios jurídicos que nos garantem, prima facie, direitos políticos fundamentais.

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Em janeiro de 1821, no decurso da Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820 e das eleições que, entretanto, a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino mandara observar, no Palácio das Necessidades – atual Ministério dos Negócios Estrangeiros – encontrava-se um significativo punhado de portugueses que partilhava a ambição de lançar os alicerces de um novo Portugal. A ideia era simples: extinguir tudo aquilo que havíamos herdado do chamado Antigo Regime e, partindo de uma lei fundamental, conformada ao sabor do liberalismo vintista, criar uma nova sociedade. Uma sociedade que, prontamente, observasse os direitos individuais do cidadão e estabelecesse a organização e os limites dos poderes políticos do Estado. Neste sentido, apontada como “flagelo da humanidade”, “instituto bárbaro” e contrária aos princípios recém-consignados nas Bases da Constituição, depois de 285 anos de desumanidade, a Inquisição fora prontamente extinta, ressalvando-se a importância de, no futuro, não se repristinarem “monstruosidades abolidas”.

Concomitantemente, as mencionadas Bases, aprovadas em março de 1821, consagraram, de forma pioneira em solo português, um significativo e importante leque de direitos fundamentais. Apartando-nos, por ora, do maior ou menor grau da sua concretização, inegável é o ímpeto audacioso e reformador que repousa sobre alguns dos mais belos trechos normativos ali positivados: “A Constituição Política da Nação Portuguesa deve manter a liberdade, segurança, e propriedade de todo o Cidadão”; “A liberdade consiste na faculdade que compete a cada um fazer tudo o que a lei não proíbe […]”; “A segurança pessoal consiste na proteção que o Governo deve dar a todos para poderem conservar os seus direitos pessoais […]”; “A propriedade é um direito sagrado e inviolável […]”; “A livre comunicação de pensamentos é um dos mais preciosos direitos do Homem. Todo o cidadão pode conseguintemente, sem dependência de censura prévia, manifestar as suas opiniões em qualquer matéria […]”; “A lei é igual para todos […]”.

Infelizmente, todos estes direitos conquistados no alvor de oitocentos, em vários momentos não resistiram às vicissitudes político-sociais que amiudadamente assolaram Portugal. Como tal, muitos foram os que lutaram e morreram pela sua reafirmação. Decorridas duas centúrias, continuamos a pugnar pela concretização plena de grande parte deles. É uma tarefa constante que nos consome, mas que simultaneamente nos liberta. Pois, no dizer de José Augusto Mourão, do qual se assinala, também, o 10.º aniversário sobre a sua morte, “é no fazer do mundo a vir /que a liberdade avança”.