O ocaso do mês de julho de 2021 mostrou-se especialmente triste para a cultura portuguesa. Em dois dias vimos partir duas personalidades incontornáveis: o poeta Pedro Tamen e a pianista Olga Prats.

Infelizmente, não tive a oportunidade de privar com o poeta e tradutor, mas quis a fortuna que a minha vida se cruzasse com a da pianista Olga Prats. Não pretendo, de forma alguma, ensaiar aqui uma biografia de tão incontornável artista. Para isso, haverá, certamente (e assim o espero!), quem o faça com mais propriedade. Contudo, fazendo parte de uma geração de jovens músicos que se mostra devedora dos seus ensinamentos, cumpre prestar-lhe esta merecida homenagem.

A pianista Olga Prats, ao longo de quase 70 anos de carreira, para lá de se ter erguido enquanto pioneira e notável intérprete da música de Astor Piazzolla em Portugal, foi responsável pela formação de múltiplas gerações de músicos eruditos que se dedicaram à prática de música de câmara. Em rigor, o facto de a sua larga experiência camerística (relembre-se, desde já, que Olga Prats foi um dos membros fundadores do incontornável Opus Ensemble) ter andado sempre de mãos dadas com uma total e genuína entrega aos seus discípulos fizera com que, ano após ano, não houvesse aluno na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) que não se digladiasse para usufruir do seu savoir faire.

Quando, em setembro de 2008, entrei para a ESML a professora Olga (assim conhecida pelos alunos que tanto a estimavam) dera a sua última aula. Para os alunos que haviam acabado de ingressar na mencionada instituição fora uma verdadeira mescla de sentimentos. Por um lado, não mais poderíamos ser seus alunos. Por outro, havíamos tido o privilégio de assistir a um momento ímpar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Assim que professora Olga se sentara ao piano para exemplificar uma passagem do Invierno Porteño, por momentos, todos percebemos o que significava ser um verdadeiro Mestre: aquele cuja genialidade de (re)criação é análoga à transmissão de conhecimento. A serenidade com que tocara a parte final do referido andamento não só mostrara, de forma sublime, os vários coloridos sonoros possíveis como criara, em todos nós, uma espécie de “borboletas na barriga”. Afinal de contas, aquela aula não era o fim de uma história, mas antes de um capítulo que haveria de ser prosseguido por todos os seus discípulos.

Anos mais tarde, em virtude de um projeto musical que estava a desenvolver com o grupo de música de câmara Entre Madeiras Trio, tive a enorme felicidade de ser seu “aluno”. Ademais, um “aluno especial” a quem a Mestre Olga Prats, de forma completamente abnegada, abrira as portas de sua casa para partilhar conhecimento.

A flautista Miriam Cardoso, o oboísta Filipe Branco e eu, com um saxofone às costas, alí estávamos, num sábado de manhã, para absorvermos tudo quanto pudéssemos.

Assim que nos viu, como era seu apanágio, a anfitriã tudo fez para que nos sentíssemos “à vontade”, pois só assim, no seu entender, poderíamos fruir por completo a arte dos sons.

De forma venturosa, a história repetira-se na sua plenitude. Enquanto nos aprontávamos, a professora Olga tocava para nós um novo trecho de Piazzolla, demonstrando-nos, uma vez mais, as várias possibilidades interpretativas e as especificidades do seu piano de cauda. Peculiarmente, esse piano encontrava-se numa sala acolhedora, forrada com borboletas de todas as formas, materiais, tamanhos e cores. Borboletas provenientes de todo o mundo, oferecidas por familiares, amigos e alunos.

Depois de muitas horas preenchidas com inesquecíveis histórias e aprendizagens percebemos a grande lição que a Professora Olga tivera dado ao longo da sua vida: sendo grande nunca se esquecera dos pequenos.

A pianista Olga Prats não fora apenas a Professora ou a Mestre. Numa linguagem metafórica, fora a dama das borboletas.

Lisboa, 30 de julho de 2021