Na zona em que moro os edifícios altos parecem agora mais altos e mais pesados. Ao passear por eles, paradoxalmente perdem aos meus olhos pelo menos metade da sua dignidade e estabilidade habitual. Como se eu risse deles e da seriedade que têm. “Não nos abalou, já viste? Esse incidente matinal, coisa perfeitamente natural e expectável, como dizem por aí, nem nos tocou!” – parecem sussurrar-me de longe, desenhando com a sua estrutura os limites da tela para o pôr do sol que está agora a acontecer.

A terra não parou às 5h11. Tecnicamente fez o contrário! E com ela tantos pequenos mundos estremeceram por segundos longos, demorados, esticados até ao infinito.

Acordada pela gata que fugiu em pânico para se esconder por baixo do roupeiro, olho para a janela. Tudo normal – Lisboa a dormir. Será que a minha cabeça esteja ainda a sonhar? A gata fugidia indica que não – que o edifício, agora suportado como se apenas por fósforos, esteja mesmo a dançar uma dança estranha e terrível. Quando pára, verte-se em mim uma solidão fria como se o tremor da terra fosse meu e apenas meu.

“De facto, o sol, com a sua força imparável, está a dar um espetáculo digno de um dia do terramoto!” – salta-se-me do peito esta frase ao chegar ao jardim.

Tento captar o olhar da gente que treina, que corre, que passeia por mim no jardim do meu bairro. E não encontro nada de novo. Como se nada tivesse acontecido. Aparentemente continuamos a ser todos pessoas sérias, com trabalhos responsáveis, posições importantes. Com anseios e correria habitual. Não nos conhecemos e por isso também não nos cumprimentamos quando passamos uns pelos outros. Desvio por desconforto o olhar ao encontrar por segundos olhos desconhecidos, como se invadisse um espaço privado querendo partilhar com outra pessoa algo novo e indescritível.

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De manhã, entro com facilidade, quase por ordem militar, no ritmo indicado para mais uma segunda-feira na minha vida. A consulta de limpeza dentária marcada na semana passada. Corro na hora de almoço para não faltar ao compromisso. Tão ridículo é correr para destartarização sete horas depois do terramoto! Mas quero gritar o contrário: que infinitamente belo poder correr para destartarização sete horas depois do terramoto!

Uns dizem: “Não aconteceu nada”. “Mas podia ter acontecido!” – respondem outros. Na pressa de seguir as análises, de observar com que dedicação comentam os preocupados e com que irritação agem cansados do assunto, sem pressa nenhuma em apanhar nas palavras dos políticos qualquer sinal de incompetência e abdicando de relatar nos socialmedia “como”, “quando”, “se” e “porquê”, dou-me ao luxo de deixar o terramoto ser o terramoto. Abalar. Destruir. Libertar energia. Mudar.

Os especialistas informam que o sismo teve três réplicas. A que eu senti mais, veio ao final do dia. Veio com um cãozinho que reconheceu a sua dona e correu aos seus braços com uma explosão de alegria como se fosse o último dia. Veio com uma mãe que fazendo o seu treino de corrida acompanhava dois filhotes de bicicletas que quase me atropelaram ao tentar cumprimentar o comboio passando por baixo da ponte pedonal. Veio com um grupo de vizinhos paquistaneses (ou talvez indianos) que dançavam em família e nada faziam  da pressa da semana de trabalho a começar. Veio para abalar ”falta-me tanto” para deixar –  “tenho tanto”. Para fazer cair: “tudo garantido” – E fazer ficar: “tudo oferecido”. Para parar: “pedir mais”, e libertar: “agradecer mais”.

E apesar de nos comportarmos todos como se de facto nada tivesse acontecido, o nosso mundo estremeceu. E quando finalmente paro, verte-se em mim como mel, por segundos longos demorados, esticados até ao infinito, uma gratidão quente e sem dúvida habitada igualmente por toda esta gente que treinou, correu, passeou por mim no jardim do nosso bairro.