… todos ralham, mas ninguém têm razão. Citando Albert Uderzo e René Goscinny, “Todos? Não!”. No momento em que vivemos, alguns têm razão para ralhar (ou para se queixarem). A atual conjuntura terá um impacto, porventura irreversível, sobre a agricultura nacional. A Europa tem a suas atenções voltadas para a crise bélica e humanitária na Ucrânia. E para o peso que o conflito tem tido nos mercados. O sector agrícola tem-se manifestado, fazendo notar as suas preocupações sobre a necessidade de um apoio direto que permita conviver com este clima de incerteza. E a tutela tem (tentado) dar resposta, anunciando algumas medidas extraordinárias, que parecem nada mais que paliativas.

Mas um dos problemas de fundo mantém-se: todo o País continua em seca. O nível de armazenamento das albufeiras continua a baixar. Mas as culturas vão para a terra, independentemente de não haver previsão de chuva significativa até ao verão. Não há grande esperança que este cenário melhore… até porque já não há dúvida do real impacto das alterações climáticas sobre o território. Sem chuva o país não sairá desta seca e a sustentabilidade das explorações agrícolas nacionais ficará com certeza comprometida.

O Ministério da Agricultura e da Alimentação, aparentemente consciente desta realidade, garante que irá “apoiar o regadio eficiente e sustentável”. Aliás, faz parte do Programa do Atual Governo uma aposta no regadio nacional, dando continuidade ao trabalho encetado nas anteriores legislaturas. O investimento público previsto para apoiar o regadio até 2030 é de, aproximadamente, 421 milhões de euros, agregando os diferentes programas de financiamento, uns em execução, outros ainda por implementar. Parece muito? Até pode parecer. Mas não é. Segundo o Estudo Regadio 2030, realizado pela EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva, S.A. a pedido do anterior Ministério da Agricultura, o potencial desenvolvimento do regadio coletivo requereria uma verba de 1.254 milhões de euros. Um valor três vezes superior ao atualmente orçamentado.

Além de manifestamente insuficientes, as verbas disponíveis representam uma redução significativa face aos anteriores quadros comunitários. No Programa de Desenvolvimento Rural 2007-2013 (PRODER) o investimento no regadio representava cerca de 17% (723 milhões de euros) da total da despesa pública na agricultura. Já no Plano Estratégico da Política Agrícola Comum 2023-2027 (PEPAC) apenas 4% (100 milhões de euros) da despesa pública serão dedicados ao investimento nas infraestruturas (atuais e a construir) coletivas nacionais, menos 74% que o anterior Programa de Desenvolvimento Rural 2014-2020 (PDR2020). Para os privados, estão previstos 624 milhões de euros nas medidas de apoio ao investimento nas explorações agrícolas, metade do previsto para as mesmas medidas no âmbito do PDR2020. Mas nem tudo é para apoiar um uso mais eficiente da água; incluem-se investimentos na modernização das explorações, na melhoria do desempenho ambiental, na fixação de jovens agricultores. Parece-me curto… aliás, arrisco dizer que, com a pressão da falta de mão-de-obra, o aumento dos custos de produção e a pressão ambiental sobre a atividade agrícola, a despesa no regadio individual (infraestrutura, equipamento, tecnologia, …) será apenas uma pequena fatia do gasto global.

Numa outra frente, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática continua (aparentemente) alheio a todo este tumulto. A (porventura desconhecida por alguns) Taxa de Recursos Hídricos, estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 97/2008, de 11 de junho, pretende que o utilizador interiorize e compense os custos e benefícios que o uso da água projeta sobre a comunidade, procurando um aproveitamento mais racional dos recursos. Por outro lado, a legislação prevê a afetação de recursos financeiros, provenientes da “receita” dessa taxa, a projetos e investimentos necessários para melhorar o uso da água, nomeadamente a projetos de grande envergadura. Porém, não tem sido financiado quaisquer investimentos na melhoria da sustentabilidade dos serviços de distribuição de água de rega e na melhoria da eficiência de utilização de água para este fim. De boas intenções… Mais provocador é o caminho contrário que se está a seguir. Ao invés de discutir e avaliar o potencial de novas infraestruturas, a Agência Portuguesa do Ambiente irá promover nos próximos dias 19 a 21 de maio um seminário sobre a remoção de barragens, copiando o que os nossos parceiros nórdicos tentam concretizar, visando a restauração dos cursos fluviais. Mas importa frisar: em termos de escassez de água, a realidade dos países do Norte da Europa é completamente contrária ao dos países do Sul, dos quais se destaca Portugal. No Norte há excesso, no Sul há défice. No Norte não é necessário armazenar, enquanto no Sul é urgente guardar. Estamos desalinhados…

Em meu entender, continuamos a compreender de forma errada as reais necessidades do sector. A visão política parece defasada da realidade, apresentando medidas avulso, sem que realmente tente dar resposta às “dores” dos produtores nacionais e às carências que nos assolam. O Governo quer que a agricultura seja mais eficiente, tecnológica, digital. Mas se não tivermos recursos disponíveis, não será necessário este investimento. Se não tivermos com o que regar, não serão sensores, drones ou painéis fotovoltaicos que irão garantir a produção agrícola. Há que procurar orientar, sintonizar e aproveitar os financiamentos disponibilizados pela nova PAC para garantir a implementação de medidas de fundo para o combate às alterações climáticas, garantindo o abastecimento de água às culturas, aumentando o volume e/ou o valor da produção agrícola, concorrendo para uma menor dependência externa, uma maior competitividade económica e, por conseguinte, uma maior capacidade de atração/retenção de jovens no setor. E não precisamos de reinventar a roda. O levantamento está feito. Basta vontade política para o executar.

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