Começa a ser muito difícil manter a ponderação e o bom senso. Em Portugal, a classe política está cada vez mais afastada dos problemas quotidianos dos cidadãos e quem governa vai em crescendo na recusa de assumir responsabilidades, ao mesmo tempo que já capturou praticamente todo o aparelho do Estado. Somam-se episódios de desresponsabilização e empregos para os amigos do poder, ao mesmo tempo que se vai criando o medo de criticar, não se vá ficar sem trabalho.

O regime começa a dar sinais de enorme preocupação, quer pela sua paralisia, quer pela reacção que começamos a identificar nos portugueses em geral.

A paralisia que preocupa é não se ver no regime capacidade de se auto-corrigir. O PS tem controlado, sem escrutínio nem oposição eficaz, todo o aparelho do Estado, desrespeitando as mais elementares normas democráticas e o modelo de entidades de supervisão e regulação independentes, que o país adoptou ao aderir à União Europeia.

Exemplos disso estão na nomeação de militantes partidários, simpatizantes ou ex-governantes para as entidades reguladores ou grupos de missão.

O último caso é o da escolha de Ana Paula Vitorino para presidente da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), insistindo-se em não querer que os reguladores sejam independentes. Sim, o Governo não quer que sejam independentes porque há pelo menos uma parte do PS que não se revê nesse modelo. O que contradiz os compromissos que tem. enquanto país da UE. e é igualmente contraditório com a resistência em assumir responsabilidades políticas quando as coisas correm mal. Não se pode ter o melhor dos mundos: querer que seja tudo uma decisão política de quem governa  – do tipo quem ganha manda em tudo – e ao mesmo tempo recusar-se a pagar o preço político dos erros.

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Também na linha do princípio “quem ganha o poder manda em tudo” está o modelo escolhido para preparar a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril. O Governo decidiu entregar a Pedro Adão e Silva a responsabilidade executiva das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. A decisão tem sido controvérsia em diversas dimensões. Mas o que de facto nos devia preocupar é o pendor autocrático da decisão do Governo, considerando que tinha total legitimidade para decidir quem ia liderar as comemorações sem ouvir ninguém, como se o 25 de Abril fosse seu.

A recusa em assumir responsabilidades e até de aceitar a critica política atingiu mais um ponto alto no caso de entrega de dados de manifestantes à embaixada da Rússia por parte da Câmara Municipal de Lisboa. Fernando Medina acusou quem o criticou de “aproveitamento político”, nomeadamente Carlos Moedas que pediu a sua demissão, enquanto o PS acusa o PSD de “oportunismo político”. Estamos na linha do que tem sido a cartilha do Governo e do PS. Quando não querem assumir as responsabilidades políticas, os outros são oportunistas e até anti-patriotas, como o primeiro-ministro já acusou Miguel Poiares Maduro, Ricardo Baptista Leite e Paulo Rangel.  O que se tem passado na Câmara de Lisboa desde 2011 é grave e, embora Fernando Medina possa não ter razões para se demitir, deve explicar muito bem o que se passou. E é preciso saber se há outras autarquias que também fazem isso – para já sabe-se que Porto, Coimbra e Faro só fazem essa comunicação à polícia.

Claro que um governante ou um presidente de Câmara não podem controlar tudo. Mas têm de assumir a responsabilidade do que corre mal, assim como ficam com os elogios e os apoios quando as coisas correm bem. No Governo temos pelo menos dois ministros, a ministra da Justiça e o ministro da Administração Interna que não percebem, ou não querem perceber, que ser governante significa assumir responsabilidades políticas que podem ter custos elevados.

Paralelamente, o PS vai-se digladiando internamente. Sendo o PS um partido pilar do nosso regime, as suas lutas internas seriam até positivas para a sua auto-regeneração se não estivessem já a dar sinais de afectarem os interesses do país. A agressividade de um dos grupos que tem ambições de suceder a António Costa, que tem como um dos líderes Pedro Nuno Santos, dá sinais de ter contaminado a governação nomeadamente através do que se tem passado na TAP.

Enquanto isto tudo se vai passando, o PSD parece adormecido e por vezes a perder mais energia nas suas lutas internas do que no escrutínio que devia fazer. O CDS, igualmente em lutas internas, está em risco de desaparecer. O BE anda perdido e desgastado, aparentemente em busca de um novo papel, agora que António Costa encontrou no PCP e no PAN a via para aprovar o Orçamento. O PCP está focado no complicado equilíbrio de fazer oposição e apoiar o PS. O PAN tem nos animais e nas touradas as suas preocupações. Os partidos que entraram agora no Parlamento, o Iniciativa Liberal e o Chega, concentram-se nos seus potenciais eleitores e vão explorando as fragilidades dos partidos instalados e o crescente descontentamento dos eleitores. E o Presidente da República navega nesta instabilidade latente sem saber o que fazer ou até dizer.

Muito provavelmente os casos que levam aos debates acalorados nos meios de comunicação social e nas comunidades em rede na internet pouco importam à maioria dos cidadãos. Poucos dão peso à importância de ter reguladores independentes, de ter umas comemorações do 25 de Abril que não sejam o feudo de um partido ou de se ter entregue dados de opositores à Rússia, China ou Israel.

Um país cada vez mais dual, em que há uns bastante bem e outros bastante mal, parece estar fora da visão das lideranças. Salários demasiado baixos no sector privado, a insegurança do negócio ou do emprego, transportes públicos que não respondem às necessidades das pessoas, uma Saúde que está um caos e uma Educação que um caos está são muito mais as preocupações do quotidiano.

Os discursos dos líderes políticos não apontam soluções para estes problemas e alguns, pelo contrário, nem parecem conhecer o país em que se vive. Um país em que há pais e jovens com trabalhos extra para conseguirem pagar a faculdade, porque não conseguiram entrar na universidade pública ou famílias que se protegem com seguros de saúde levadas pelo medo der não terem um médico, um exame ou um tratamento quando precisam. Ou ainda, entre aqueles que vivem em bairros onde há choques de cultura, o anseio de haver mais polícia. E sim, entre os jovens identifica-se há algum tempo uma enorme desconsideração pela classe política e, mais recentemente, uma crescente simpatia pelos cantos de sereia do populismo.

A descrença na classe política e nos partidos – neste último caso até em jovens que se tentaram envolver – enquanto protagonistas para a solução dos nossos problemas é que nos está a levar para os resultados identificados no trabalho de Alice Ramos e Pedro Magalhães aqui citado no Expresso. Mas essa descrença é em si uma consequência de se sentirem governados por quem anda de costas voltadas para os seus problemas. O que se anda a passar em Portugal é muito preocupante. Aos poucos, vai crescendo uma revolta surda. Era bom não perder o bom senso e a moderação, mas é cada vez mais difícil.