Quando em 2011, o governo de Pedro Passos Coelho herdou, do governo de José Sócrates, o descalabro de um país a beira da insolvência, com um memorando de austeridade assinado pelos socialistas e sob a vigilância apertada da troika, poucos seriam capazes de prever o que aconteceu a seguir.

Para pasmo de gente de bem, o PS logo adoptou uma narrativa impudica, como se nada tivesse a ver com a bancarrota iminente e a ruptura de tesouraria, culpando, sem vergonha nem arrependimento, a coligação PSD/CDS por todas as desgraças que afligiam as contas do Estado.

Ao regressar ao poder em 2015, António Costa e o PS não só “mandaram às malvas” os princípios, inventando a “geringonça” – sem “linhas vermelhas” com os adversários da véspera -, como tiveram o engenho de criar o “slogan” das “contas certas” para aliviar a consciência das malfeitorias de Sócrates, e parecerem definitivamente alheios a qualquer responsabilidade no pré-colapso a que conduziram o país nessa altura.

Volvidas décadas, a cena repete-se, embora o PS tenha reescrito o guião.

Agora já não se trata de “sacudir a água do capote” em matéria de austeridade, mas, sim, de fazer aprovar no parlamento, de “braço dado” com o Chega, um conjunto de medidas que recusaram ou adiaram enquanto governo, apesar da folgada maioria de deputados.

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Viu-se agora com o IVA da luz, ao forçarem a descida para 6% que António Costa, acolitado por Pedro Nuno Santos, rejeitara por duas vezes, sendo essa opção agora considerada por Alexandra Leitão “socialmente justa”. Um descarado volte-face.

A repetição desta atitude camaleónica do PS – substituindo o PCP e o BE pelo Chega -, ilustra bem a tendência socialista para defender uma coisa e o seu contrário, com a maior desfaçatez. E ainda se gabam, como se ouviu a Pedro Nuno Santos, para quem “o governo não conseguiu até agora aprovar uma única proposta na Assembleia da república”. Ou seja:  o bloqueio da AD funciona e recomenda-se…. E não é bonito.

Desde a abolição das portagens nas ex-Scuts, ao IVA na electricidade, o PS passou a actuar no parlamento como se não fosse o mesmo partido e com os mesmos personagens, que sustentaram o oposto  como governantes.

Poderá achar-se que a memória colectiva é curta. E selectiva. Mas, neste particular, o PS abusa. E lançou uma nova fórmula – a “governação” parlamentar.

Vem, a propósito, recordar, que António Costa recuperou antigos e indefectíveis “socráticos”, puxando-os para o seu lado no anterior governo, no parlamento e, até, em Estrasburgo, enquanto estes se comportavam como se não tivessem sido servidores fieis e colaborado de perto  com o ex-primeiro ministro, ainda a contas com a Justiça.

Mas não só. Houve já quem achasse Pedro Nuno Santos um “avatar” de José Sócrates. De facto, muito cedo, Pedro Nuno dedicou a Sócrates uma admiração ilimitada. E em junho de 2011 proclamava em Santa Maria da Feira, que “só há uma liderança que coloca Portugal à frente de tudo: é a de José Sócrates, é a liderança do Partido Socialista”. Não mudou muito de opinião, embora finja que se esqueceu.

Mais tarde, Sócrates retribuiria o elogio de Pedro Nuno ao distingui-lo como “um grande político” e “um dos melhores quadros políticos que o PS tem ao nível nacional”. Enfim, tudo em família.

A realidade é que o ambiente político está turvo, e no parlamento mandam as oposições e dançam consoante a música.

Bastou, por exemplo, ao presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar Branco não ter calado o Chega, em nome da defesa da liberdade de expressão dos deputados – num episódio dispensável, mas banal -, para desabar a indignação das esquerdas, que ainda dura, a “fazer render o peixe”, comandada pelos seus prosélitos mais radicalizados.

E se é óbvio que os deputados da Nação devem reger-se por normas de urbanidade e de respeito, sem pisar a decência e muito menos descer ao insulto, também não pode a casa da democracia ser um santuário virtuoso, frequentado apenas por santos e beatas pudicas, proibidos de usar um vocábulo mais corrosivo ou vicentino no calor de um debate. Ou nos Passos Perdidos…

Portanto, Aguiar Branco limitou-se a salvaguardar princípios e valores que são fundamentais, contrariando o extremismo esquerdista, que quer aplicar a “lei da rolha” à custa do “discurso do ódio” e de outras modas de ocasião, para, na prática, censurar tudo o que não faça parte do seu catecismo ideológico.

Felizmente, nem o país é dominado por sentimentos racistas e xenófobos, como se pretende generalizar, nem os “discursos de ódio” andam por aí a solta, a por em perigo os imigrantes que escolheram Portugal para trabalhar e viver.

Por isso, quando o SOS Racismo reclama, em comunicado, que Aguiar Branco não tem condições para continuar a exercer as suas funções como segunda figura do Estado, só poderá concluir-se pelo exagero e desproporcionalidade, ditados pela ligeireza em que incorrem, com frequência, tais organizações de alegado e mal atribuído “interesse público”.

Vive-se, aliás, uma época muito propícia a indignações desmedidas e a ressentimentos, com os media sempre receptivos à “espuma dos dias”, enquanto o tema da imigração, inscrito na ordem do dia, não foge à regra.

A imigração clandestina, que tem assolado a Europa, Portugal incluído – e foi muito responsável pelo “Brexit” -, desnudou muita cobardia política e vontade de conquistar votos, sacrificando a coerência e a ética.

É um sério problema que se coloca ao Ocidente e às democracias liberais, se não forem tomadas medidas adequadas, tanto de contenção como de integração efectiva. Mas não são esses procedimentos que interessam aos objectivos dos extremistas, que encontram nas comunidades de imigrantes uma via instrumental para adubar as suas ambições.

Em vésperas de Jogos Olímpicos, foi notícia há dias a operação desencadeada pela polícia francesa, ao desmantelar um acampamento improvisado de imigrantes, perto do rio Sena, entre vários outros espalhados pela região parisiense.

Sem receber as Olimpíadas, mas já com problemas de acolhimento de imigrantes, também foi notícia, ultimamente, o acampamento montado à volta da igreja dos Anjos, em Lisboa, uma réplica, em escala muito menor, daquilo que aflige as autoridades francesas.

Por isso, não admira que o presidente do município, que já observou presencialmente, enquanto comissário europeu, os dilemas que a imigração descontrolada coloca em várias capitais da União, tenha tomado a iniciativa de confrontar o governo e o Presidente da República com o problema dos sem-abrigo, que se tem avolumado na capital e não só.

Os acampamentos à beira do Sena ou junto à igreja dos Anjos e na gare do Oriente, são um sinal daquilo que não deveria acontecer, e reflectem apenas a face mais visível da uma “invasão” desregulada, explorada por redes de traficantes, que conhecem bem a atracção exercida pela Europa sobre populações indefesas, deserdadas da fortuna, oriundas de países amiúde sujeitos a regimes totalitários e fora dos noticiários das televisões e das redes sociais.

A chamada “política de portas escancaradas”, que as esquerdas cultivam no velho continente, constitui, simultaneamente, um revés para as políticas de integração e um sério desafio, com preocupante dimensão humanitária e sem solução à vista.

Portugal precisa da imigração para compensar a escassez de mão de obra e o seu défice demográfico (um quarto dos bebés nascidos em maternidades portuguesas são já de mães estrangeiras), mas deve acautelar, também, que esses imigrantes não sejam vítimas de redes clandestinas ou de instrumentalização por parte de organizações radicais.

Ora, o certo é que se contam por milhares, os imigrantes que querem resolver a sua legalização – há quem espere mais de um ano para conseguir um cartão de residência –, e desesperam perante a incapacidade da AIMA, sucessora do antigo SEF, extinto pelo anterior governo socialista.

Carlos Moedas diz-se envergonhado por o país “não ter política de imigração”. E tem razão.

António Costa especializou-se, durante seis anos de governo, em “empurrar os problemas com a barriga”, e, no caso da imigração por maioria de razão, para não arriscar ser “mal amado“ pelas esquerdas.

As consequências estão à vista e percebe-se que Moedas,  autarca com a incumbência de gerir a capital e a obrigação de conhecer as suas zonas de sombra, tenha ficado alarmado com aquilo que viu ou que lhe constou.

É que para além do acampamento dos Anjos há casas apinhadas de gente, a viver em condições deploráveis, quer na zona limítrofe do Martim Moniz, quer noutros pontos da cidade, já fora do perímetro e da jurisdição da freguesia de Arroios, uma das mais sacrificadas.

E acaba a pedir-se a este governo que decida em contrarrelógio o que ficou “a marinar” tempo demais no “jogo de empurra” de anteriores executivos.

De acordo com elementos da Pordata, verificou-se no final do ano passado que o número de imigrantes quase duplicou numa década, e só em 2023 entraram no pais, cerca de 118 mil, um recorde desde que há registos.

A população estrangeira residente já se aproxima da fasquia de um milhão de pessoas, sendo um terço de brasileiros.

Quase um terço, também, da comunidade imigrante, vive em situação de pobreza ou de exclusão social, um retrato inquietante e socialmente explosivo, se essa tendência não for invertida, com realismo, e sem continuar a varrer o problema “para debaixo do tapete”.

Recorde-se que já em março do ano passado, houve especialistas em imigração, que se mostravam críticos com o rumo das coisas, em vésperas da substituição do SEF pela AIMA, ainda na vigência do governo socialista.

Num debate promovido pelo DN/Observatório de Segurança, dizia na altura Ana Rita Gil, doutorada em Direitos Fundamentais de imigração, que “Portugal não sabe quantos imigrantes estão no país, não sabe em que condições vivem. Está a dizer às redes, temos aqui um negócio espectacular para vocês“.

E apontava que temos uma regularização que “vai totalmente contra a orientação da União Europeia”, o que “já é uma política de imigração que considero irresponsável”.

Vale a pena citar, também, outra especialista, Susana Amador, que foi consultora jurídica do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, e que identificou o problema, comum a outros países, como “o crime parasitário“, onde as “redes se aproveitam desta vulnerabilidade, a que temos de estar particularmente atentos”.

Há muito, portanto, que o diagnóstico estava feito e se antevia a “enxurrada” de imigrantes, frequentemente indocumentados, sendo o ex-governo socialista objectivamente responsável pela degradação das condições de acolhimento e regularização dessa nova vaga, em boa parte devido à trapalhada que se seguiu à extinção do SEF, que colocou 400 mil processos em fila de espera.

Neste contexto, percebe-se o desassossego do presidente do Município. Mas os problemas dos imigrantes que chegam “a salto”, contornando as vias legais, sem contrato de trabalho nem morada certa, tenderá a agravar-se, impulsionado, também, pela necessidade de mão de obra sazonal na agricultura.

Prometeu o actual governo “corrigir a grande asneira que o Governo anterior fez, incluindo a forma como extinguiu o SEF e mudou as regras“, e que vai rever o modelo institucional de gestão da entrada de imigrantes. Foi Leitão Amaro quem o disse. Veremos.

Para lá da euforia do turismo e dos sucessivos recordes de visitantes estrangeiros, há outro país que vive abaixo dos mínimos. Conviria que não fosse ignorado.