1. O escutismo é um movimento de grande impacto, à escala global. É o maior movimento educativo não formal de crianças e jovens. O escutismo é uma fraternidade de amigos próximos, de irmãos, que partilha um ideal, um método e uma missão. Nele aprende-se o valor do compromisso, da responsabilidade e promove-se o contacto próximo com a natureza. O escutismo possibilita a educação integral do jovem através de uma original pedagogia iniciática. Pela sua natureza intrinsecamente comunitária, que constitui a vida em “Patrulha”, é um meio privilegiado para fazermos a “experiência de Deus”.

Constatamos, infelizmente, como uma tendência muito típica do nosso tempo e muito instalada nos nossos sistemas e instituições (supostamente educativos) esta ansiedade paralisante e obsessiva de tudo querer controlar, sistematizar, normalizar, institucionalizar, ordenar, classificar, avaliar, enquadrar, formatar, definir e estabelecer metas e objectivos, elaborar grelhas, gráficos, esquemas, siglas, diagramas, fluxogramas, plataformas.

Importar para o movimento este tipo de abordagens e modas pseudo-educativas, muito em voga no universo educacional actual, é correr um sério risco de esmagar aquilo que é mais puro e genuíno, e que sempre constituiu a parcela mais importante da fórmula verdadeiramente mágica do escutismo: as lições de vida do ar livre, a sabedoria do joelho esfolado, a mochila às costas e o acampamento, o entusiasmo do jogo (com a sua natureza aleatória e de grande incerteza), o risco e o gosto pela aventura, o inesperado e o irrepetível, o imprevisto, o espontâneo, o informal, a criatividade, o original, o genuíno e o puro.

Não somos um movimento de números, contas e orçamentos; somos um movimento da Palavra, da acção e também da Contemplação; somos um Movimento de relação; somos um Movimento de Comunhão. Regressemos ao essencial!

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2. Baden Powell (B-P), como ele próprio fez questão de recordar, teve uma Ideia e depois viu nessa ideia um Ideal. O ideal cresceu, consolidou-se e fez-se Movimento. Mas se não tivermos cuidado, alertou B-P, correremos o risco de nos transformarmos numa mera Organização. E tal seria dramático.

À medida que as sociedades se descristianizam e a dimensão do transcendente se vai dissolvendo, a ética laica, dentro mesmo da própria Igreja Católica, infiltra-se sorrateiramente com a sua adocicada e irresistível variedade de poções mágicas, obrigando-nos a aspirar o inevitável e impercetível perfume do esquecimento.

A vida interior vai desaparecendo e as acções do Homem vão ficando prisioneiras de interesses circunstanciais, slogans, frases feitas, pseudo-inclusões e tolerâncias, facilmente diluíveis numa qualquer enxurrada de lugares-comuns.

Querem transformar-nos, à força, em homens do nosso tempo. Mas não tem de ser assim. Nós, escuteiros, somos estruturalmente os “herdeiros”, estaremos sempre ligados aos homens do passado e ao legado que nos deixaram.

Nesta sociedade secularizada onde os valores religiosos são cada vez menos um elemento agregador e, na qual, é extremamente difícil desenvolver uma linguagem credível e significativa junto dos jovens, o escutismo traz a possibilidade única de desenvolver uma pastoral fundamentada na experiência.

O escuta é herdeiro de um passado, de uma história, de uma tradição, de uma igreja, de uma fé. O escuta percebe o mistério que o habita, percebe que está sustentado por uma realidade que em muito o ultrapassa e o transcende. O escuta ajuda-nos a perceber que o buraco da árvore pode ser um esconderijo para um lugar secreto, que o pau à beira do caminho pode ser o mastro de um navio pirata, a espada do mosqueteiro, a varinha encantada do mágico. O escuta é são porque tem um pé bem assente na terra e o outro no céu, no buraco da árvore, no navio pirata, no país das maravilhas. Seremos pessoas sãs enquanto nos alimentarmos de mistério. Incutamos nos nossos escuteiros, desde cedo, o segredo, o enigma, o mistério!

O escuta está no mundo com esta simplicidade, esta genuinidade e humildade, pois a sua escala é outra; a sua escala é a Eternidade.

3. Ser escuteiro também pode ser uma complicação para a nossa vida; a vida deixa de ser só nossa. Ser escuteiro é partilhar a noite e o dia e o dia deixa de ser só nosso.

Ser escuteiro é acreditar. Acreditar é uma complicação; é uma ameaça à nossa auto-suficiência, à nossa teimosia, ao nosso calculismo, às nossas fantasias.

Ser escuteiro significa que não estou sozinho no acampamento. Significa que há uma Aliança, há uma alvorada e um recolher.

Ser escuteiro é fazer a experiência humana no concreto, pura e dura, empática, com o nosso irmão escuta.

Depois da Promessa escuta podemos dizer que já não vale tudo: significa que eu não sou o dono disto tudo, significa que existe um “nós”. É na dinâmica do “nós” que o “eu” encontra a sua plenitude.

Deus é a plenitude da comunhão. Fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, por isso, a Patrulha é comunhão, é um espaço privilegiado para fazer a experiência de Deus. O Sistema de Patrulhas é a chave do escutismo. O motor da vida escutista é a mística e esta não é senão o desejo incessante do transcendente. Sem este desejo o escuteiro não passa de mais um elemento de uma mera organização, de uma coletividade.

4. Alerta! Na formação do jovem escuta muita coisa está em jogo:

Cuidado com a “Educação-Esponja”, o escuta recebe e absorve tudo sem critério, sensatez, prudência. Recebe o bom e o mau, torna-se confuso, hesitante, desordenado, sem legado e sem referência. Fica sem saber o que é o bem e o mal, sem saber o que é a Verdade.

Cuidado com a “Educação-Funil”, tudo entra por um lado e sai por outro. Nada é importante, nada é fundamental, essencial. O plástico é igual ao ouro, as ideias são todas iguais e o importante passa a ser experiências, experiências, experiências. Quantas mais, melhor.

Cuidado com a “Educação-Filtro”, pelo filtro passa tudo; o que é bom, desejável e virtuoso, ficando retido, apenas, os restos, as sobras, a sujidade, o que é mau.

Temos, finalmente, a “Educação-Crivo”, aquela que nos deve orientar. Crivo é a peneira, aquilo que no trabalho dos campos, na seara, na plantação, permitia reter o importante: o grão. Já as palhas e o pó era levado pelo vento. O crivo representa o discernimento, o equilíbrio, a ponderação. O crivo permite perceber e reter o que é verdadeiramente essencial. A “Educação-Crivo” contribui para a educação integral dos escutas, ajudando-os a reter o que é verdadeiramente importante, decisivo e determinante; o que é bom, belo e verdadeiro.

5. O Acampamento pode ser considerado como o expoente do jeito escuta de viver. O “aprender fazendo”, o espírito de ar livre, de serviço e o contacto permanente com a Natureza são os elementos estruturantes de toda a metodologia educativa do escutismo.

Quando um escuta tem um problema grande vai para o campo, senta-se numa pedra, acende uma fogueira, medita, reza a Oração do Escuta e resolve o problema.

Passa o tempo, vem o seu sucessor e faz a mesma coisa. Vai para o campo, acende a fogueira, mas já não sabe bem a Oração do Escuta. Ainda assim senta-se, pensa, medita e resolve o problema.

Depois vem outro, vai para o campo, senta-se na pedra, mas já não consegue acender a fogueira, não sabe a Oração do Escuta, tem muita dificuldade em apelar ao seu mundo interior e meditar. Limita-se então a pensar na vida agitada que tem e regressa, parecendo-lhe então que o seu problema está resolvido.

O que vem a seguir, já não sabe onde é o campo, não percebe o fascínio do fogo, não sabe o que é uma oração e mesmo que também tenha muitos problemas, parece que a única coisa que sabe é, afinal, contar histórias como esta.

O escutismo é um verdadeiro acontecimento! É o lugar onde aprendemos o caminho para campo; é o lugar onde aprendemos a dar valor ao “redor da fogueira”; é o lugar onde aprendemos os gestos sagrados da Oração do Escuta! Não podemos ficar apenas centrados em nós próprios, com a recordação envernizada das coisas passadas; não podemos, também, cristalizar o presente! Por isso, o testemunho do velho irmão escuta é decisivo, por isso, o legado, a herança, a tradição é determinante!

É preciso continuar a ir a “campo”!

É preciso continuar a ir lá, ao lugar onde as coisas se resolvem!

6. A vida em campo é fundamental; a vida em campo é intensa, inexplicável. Em poucas horas, dias, cabe uma vida por inteiro, a transbordar. Partidas e chegadas extenuantes, caminhadas duras ou de brincar, os jogos, as correrias, os banhos de rio, o ambiente apaixonado ao redor da fogueira, os aromas estaladiços da madeira a desfazer-se e o sabor único sobre as brasas.

Com a vida de campo olhamos em volta e sentimos que somos parte de uma grande ideia que nos move. A vida em campo é intensa, improvável…

Terá o acampamento deixado de ser o lugar do imutável, do permanente, do perdurável? Não, é deles a simplicidade perpétua que faz com que os escutas acabem por se assemelhar aos anjos.

7. Paralelamente à intuição da mudança, natural e necessária, caminha também o conjunto das coisas permanentes: “a sabedoria do joelho esfolado”. Ambas caracterizam o tempo histórico que vivemos, ao qual tem o Escutismo de saber dar respostas adequadas. No entanto, não pode andar ao sabor de modas ou interesses circunstanciais, ou transformar-se num labirinto pseudo-pedagógico-legalista-burocrático cuja operacionalização, para além de ser totalmente inexequível, vai sufocando e subvertendo a própria essência do legado de B-P. O espírito de abertura à novidade e à originalidade será sempre bem-vindo, mas tal não significa que o escutismo tem que abdicar dos seus fundamentos para se adaptar a um relativismo ético e moral exacerbado que, com a perda da memória, nos vai a pouco e pouco descaracterizando e fazendo perder a identidade tão distintiva e específica que sempre caracterizou o escutismo.

Aos seus Dirigentes, nos mais variados contextos e âmbitos de intervenção é pedido fidelidade, coragem e sobriedade. Não nos entreguemos a retóricas estéreis, frívolas, mundanizadas, a modas pseudo-pedagógicas passageiras. Elas serão sempre representações parciais e temporárias da realidade. O nosso critério será sempre o Método e o seu legado, alicerçado no Evangelho.

Nota: este artigo resulta de uma iniciativa individual e o seu conteúdo não vincula qualquer posição intitucional do CNE