Há uns dias fui contactada por uma pessoa com Crohn, uma das doenças inflamatórias do intestino, que por ter doença em actividade severa tem que fazer nutrição clínica, isto é, ingerir uns complementos nutricionais específicos por não se poder alimentar “normalmente”. Note-se que a pessoa em questão, na casa dos 30, ganha pouco mais do que salário mínimo nacional. O custo diário da nutrição específica e prescrita pelo médico especialista que a segue, ascende a uma larga dezena de euros… por dia! Zero comparticipação por parte do Estado português.

Na verdade, em toda a Europa, só Portugal e Itália não comparticipam estes suplementos de nutrição clínica, usados em situações médicas muito específicas, devidamente documentadas e com orientações clínicas estabelecidas internacionalmente. Para que fique claro: todos os países europeus comparticipam, com excepção de Portugal e Itália!

Há anos, que vários representantes de doentes e profissionais clínicos tentam sensibilizar os sucessivos governos para a questão da comparticipação da nutrição clínica. As respostas têm sido sempre vagas ou inexactas, traduzindo-se numa situação inalterada. Argumentos como “ importa proceder à análise, identificando os benefícios clínicos”, é ignorar completamente toda a investigação médica e orientações clínicas que existem.

Mas situações difíceis de entender e explicar por quem procura apoio junto da Associação Crohn Colite Portugal, da qual sou presidente, não se ficam por aqui.

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Uma pessoa com Colite Ulcerosa, a fazer imunossupressão (com o sistema imunitário muito enfraquecido devido à medicação) e a trabalhar numa caixa de hipermercado, questionou-nos quanto ao seu acesso à vacina contra a Covid-19. Esta pessoa que, à semelhança de outros doentes a fazer imunossupressão, foram consideradas como pertencentes ao grupo de risco de desenvolver Covid-19 severa, e por isso foram incluídas como prioritárias aquando da época de vacinação contra a gripe de 2019-2020, não tiveram esse reconhecimento no plano de vacinação contra a Covid-19. Difícil é explicar a uma pessoa imunossuprimida que todos os dias, desde o início da pandemia, vê-se obrigada a sair de casa para trabalhar e está em contacto com o público em geral, é preterida em função de outros, “saudáveis”, que até podem estar em teletrabalho? Após um primeiro plano em Dezembro, que estava estabelecido para reduzir risco de hospitalizações e se regia por critérios médicos para estabelecer prioridades, de repente, passou a ser um plano de vacinação social, em que, da fase 2 em diante, os grupos prioritários são definidos com base nas profissões e não pelo critério médico de risco.

Gostaria de dizer que as situações difíceis de explicar se ficam por estes dois casos isolados. Mas, infelizmente, há muitas mais, tantas que temo não ter espaço suficiente para as enumerar. Certo é, que quando surge uma doença crónica, nomeadamente doenças inflamatórias do intestino surgem, por norma, numa faixa etária de uma população activa (15 a 35 anos), é importante reflectir ajustamentos e melhoramentos que possam garantir que estas pessoas permanecerão com a sua doença crónica controlada e em remissão. Isto fará com que, sendo pessoas que, por norma, estão a entrar no mercado de trabalho, a iniciar família e até cuidadores dos seus progenitores, possam continuar a desempenhar esses papéis, com o máximo de qualidade de vida possível. Contudo, em Portugal parece que se tem perdido esse sentido de prioridade.

Como é sabido, a reorganização dos serviços hospitalares para dar resposta aos doentes Covid-19, originou mais constrangimentos no seguimento de doentes não Covid, incluindo doentes crónicos. Um exemplo entre muitos: de acordo com o comunicado da delegação do Alentejo do Sindicado Independente dos Médicos, de Novembro de 2020, o Hospital de Évora, na reorganização para responder à pandemia, fez com que o serviço de gastroenterologia perdesse capacidade de resposta, não só pela falta de recursos humanos (perdeu três internos numa equipa de cinco médicos especialistas), mas também na realização de exames nesta área (estão mais de dois mil exames na área de gastroenterologia a aguardar marcação).

O Tribunal de Contas, num relatório publicado recentemente, sugeriu que após o confinamento geral (na primeira vaga da pandemia) “poderá ser oportuno proceder a um reconhecimento no SNS das melhores práticas administrativas de reorganização dos serviços, bem como a revisão e o ajustamento de planos de contingência”, por forma a conhecer e avaliar a afectação de recursos ao tratamento dos doentes com Covid-19, face às necessidades de diagnóstico e tratamento de outras doenças, ainda que não urgentes. Aponta, inclusive, que as medidas propostas em Maio pela Ministra da Saúde, para o acompanhamento de doentes não Covid-19, não resolvem o problema a curto prazo e avança com a necessidade de reestruturar o SNS.

Depois disto… a situação, obviamente, piorou ainda mais!

Contudo, é importante realçar que nós queremos mais do que apenas reclamar do que está mal. Temos propostas que estamos dispostos a discutir, em nome das mais de 24 mil pessoas que em Portugal têm uma doença inflamatória do intestino, e que partilhamos na petição que está em recolha de assinaturas:

  • Criação de centros de referência para DII: é urgente que em Portugal se abra a possibilidade de se criarem centros de referência  para as Doenças Inflamatórias do Intestino, face ao crescente número de novo casos diagnosticados (aproximadamente 150 novos casos/ano) e à necessidade de estar na vanguarda da investigação desenvolvimento de competências nesta área;
  • Maior acesso aos medicamentos inovadores: a Portaria n.º 351/2017, de 15 de novembro impõe que os medicamentos para doenças inflamatórias do intestino nas formas mais graves sejam prescritos “apenas por médicos especialistas em gastrenterologia dos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”. Esta decisão discriminatória é imoral, até porque o mesmo tipo de medicação é usado em doenças de foro reumatológico ou dermatológico, onde esta restrição não existe. São cerca de 20% das pessoas com doença inflamatória do intestino que necessitam destes fármacos específicos, porque não respondem ao tratamento convencional. Importa, por isso, fazer a revisão desta portaria e repor a igualdade de tratamento e acesso aos cuidados de saúde;
  • Isenção de Taxas moderadoras: prioritarização das pessoas com doenças inflamatórias do intestino à isenção de taxas moderadoras;
  • Comparticipação de exames e análises: nas doenças inflamatórias do intestino, a análise da calcoprectina fecal é um indicador cada vez mais usado para medir a actividade da doença. É uma análise não invasiva e de baixo custo financeiro e de recursos humanos quando comparada com outros exames complementares. Contudo, no Serviço Nacional de Saúde é apenas realizada a nível hospitalar, não sendo objecto de comparticipação se realizada em laboratórios convencionados.
  • Comparticipação de suplementos alimentares (ex. probióticos, suplementos vitamínicos e minerais) e em nutrição clínica: o encargo financeiro que este tipo de tratamento requer é absolutamente incomportável. É, por isso, importante e urgente incluir comparticipação de suplementos alimentares e produtos de nutrição clínica para pessoas com doenças inflamatórias do intestino, desde que prescritos por médico especialista.
  • Criação de um Cartão WC – cartão destinado a pessoas com Doenças Inflamatórias do intestino, que permita não só o acesso prioritário a instalações sanitárias localizadas em locais públicos ou acessíveis ao público, como também a instalações sanitárias que são destinadas a funcionários dos espaços comerciais. Este seria extensível a outras condições médicas que necessitem de acesso rápido e próximo de um wc;
  • Aposta em Saúde Digital:  a reorganização dos serviços hospitalares para dar resposta aos doentes Covid-19 originou, obviamente, mais constrangimentos no seguimento de doentes não Covid. A implementação de uma solução digital para esta problemática é crucial, de forma a evitar descompensação da doença crónica e agravamento do quadro clínico e uma das prioridades da União Europeia para os próximos anos.
  • Maior promoção da literacia e sensibilização no âmbito das Doenças Inflamatórias do intestino, tanto junto da comunidade médica como também, por exemplo, na comunidade escolar.

Durante o ano de 2020, falou-se muito sobre o regressar ao normal, ao que tínhamos antes da pandemia. Contudo, o que tínhamos antes da pandemia já estava longe de ser um mundo óptimo. Por isso, aproveitemos no “pós-pandemia”, não para regressar ao normal, mas para reconstruir o mundo e a sociedade em que vivemos, tornando-os num lugar mais justo, mais equitativo e mais solidário.