A sociedade deve ser promotora da saúde mental. Porém, quando se criam determinadas condições sociais e ambientais, pode ser facilitadora de doenças psiquiátricas. Este fenómeno, bem conhecido da psicopatologia, chama-se “fenómeno patofacilitante”. Por exemplo, nas culturas em que o consumo de álcool é aceite como desejável e incentivado, isto conduz a um aumento do consumo excessivo e dependência desta substância.

Na estruturação da identidade sexual, para além dos aspetos biológicos, existem influências sociais, culturais e familiares. A educação na escola, juntamente com a influência dos pares, dos meios de comunicação social, das redes sociais, etc. têm um enorme impacto no desenvolvimento da sexualidade humana.

Será que a promoção da ideologia de género pelo Estado, em particular nas escolas públicas, — como aconteceu com a recente medida legislativa (artigo 12.º da Lei n.º 38/2018) — poderá ser um fator perturbador de uma adequada identidade sexual das crianças e adolescentes?

Um sinal de que isso poderá estar a acontecer vem de Inglaterra. A ministra britânica para a Mulher e a Igualdade, Penny Mordaunt, ordenou o ano passado uma investigação para tentar explicar as razões que levaram ao aumento exponencial de pedidos de crianças e adolescentes para mudar de género. Entre 2009-2010 houve 97 pedidos (57 rapazes e 40 raparigas). Por sua vez, entre 2017-2018 os números aumentaram exponencialmente para 2519 pedidos (713 rapazes e 1806 raparigas), o que corresponde a um aumento global aproximadamente de 2500%. No caso particular das raparigas, o aumento foi de 4415%.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estes dados são preocupantes. Estranhamente, esta notícia não foi divulgada em Portugal, porque não se enquadra no politicamente correto. Apesar disso, a questão que se coloca é a seguinte: deve o Estado promover, com base numa ideologia sem base científica, a desconstrução da identidade dos papéis masculinos/femininos em crianças, e adolescentes, sabendo nós que esta pode ser uma fonte de psicopatologia (disforia de género)?

Julgo que não. Na verdade, este é também um assunto de saúde pública, pois uma ideologia não pode sequestrar o ensino e as escolas para promover uma visão sectária da identidade sexual, despojada de qualquer orientação ética, e que pode levar a um aumento de casos de disforia de género em crianças e adolescentes.

Por conseguinte, é sempre desejável que haja uma coincidência entre a dimensão biológica e a dimensão psicológica/social da identidade sexual. É necessário criar condições para que as crianças e os adolescentes possam crescer livres e mentalmente saudáveis. Daí que qualquer iniciativa, inspirada por motivações políticas ou ideológicas, que dificulte essa harmonia, nas escolas públicas, confundindo ou desconstruindo pela doutrinação ideológica, corresponde a um ato eticamente reprovável.

É importante referir que as situações de disforia de género são raras. A prevalência varia para o sexo masculino entre 0,005% e 0,014%; no caso do sexo feminino, varia entre 0,002% e 0,003% (DSM 5; APA, 2013). Atualmente, observa-se uma dramatização excessiva sobre esta matéria com claros objetivos ideológicos. Não existem razões clínicas para se modificar a organização das escolas na utilização das casas de banho, nem tão-pouco se compreendem os motivos para se implementar uma doutrinação de professores e crianças com uma ideologia radical sobre a identidade sexual.

Se o governo deseja melhorar a saúde mental das nossas crianças, não deve abandoná-las ao livre-arbítrio, nem as privar da ajuda prestada por profissionais de saúde competentes e livres de qualquer coação ideológica. A apropriação do campo de ação da psiquiatria por uma ideologia é inaceitável numa sociedade civilizada, já que os resultados poderão ser desastrosos. O país ficaria melhor servido se fosse aumentado o número de psicólogos nas escolas e promovida uma boa articulação entre estas e os serviços de pedopsiquiatria e psiquiatria do SNS. O governo deverá ter a humildade de reconhecer a insensatez deste tipo de iniciativas legislativas, desistindo de implementar um projeto político de engenharia social em que as cobaias são crianças.

Pedro Afonso é médico psiquiatra