Este ano assinalamos os 30 anos e os 25 anos da expressa vigência do princípio fundamental da subsidiariedade na Constituição da República Portuguesa. Em 1992, para acolher o Tratado da União Europeia, a III revisão constitucional foi responsável pela introdução do conceito da subsidiariedade na nossa lei fundamental, no artigo 7.º. Cinco anos mais tarde, em 1997, na sequência da IV revisão constitucional, a subsidiariedade volta à nossa Constituição, agora no artigo 6.º tornando-se princípio fundamental na organização e no funcionamento do Estado.

No momento em que se recupera a discussão da regionalização, convém lembrar que é preciso, e ainda falta, cumprir o princípio da subsidiariedade do Estado Português.

Em 1992, a III revisão constitucional incorpora, pela primeira vez, na Constituição da República Portuguesa, o princípio da subsidiariedade. A concorrência de competências entre os Estados membros e a União Europeia aprofundou-se com o Tratado de Maastricht e foi necessário acolher o princípio da subsidiariedade para descodificar a legitimidade do poder e das atribuições entre as duas instâncias.  Assim sendo, os partidos com representação parlamentar apresentaram várias propostas durante os trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional de 1992 e, após 15 reuniões, muitas divergências partidárias e o contributo de muitos especialistas, a reunião plenária de 17 de novembro de 1992 aprovou a proposta comum do PSD/PS com o aditamento do nº6 ao artigo 7.º da CRP – “6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia.”

Mais tarde, na IV revisão constitucional, em 1997, a subsidiariedade vai para além da sua aplicabilidade na gestão concorrencial das atribuições e competências comunitárias e formaliza-se também como princípio fundamental do Estado unitário português. Introduz-se, desta vez, um aditamento do nº1 ao artigo 6.º da CRP, com a seguinte redação: “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública.” – que revela uma nova aplicabilidade do princípio, num claro reconhecimento da subsidiariedade do Estado como elemento imprescindível para a leitura da ordem interna constitucional portuguesa.

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A subsidiariedade é um princípio de direito constitucional, decorrente da primazia natural do Homem sobre a sociedade e o Estado, da singularidade da pessoa e do seu insubstituível protagonismo social e político. A subsidiariedade valoriza as associações e comunidades intermédias apelando ao cumprimento dos direitos e deveres de cada uma, desde a família, procurando que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos. A sua aplicação reconhece o poder de cada pessoa e das associações naturais e sociais intermédias, impedindo a omnipotência das instâncias superiores, da mesma forma que regula e legitima as necessárias intervenções do Estado.

A temática da regionalização regressou nesta legislatura. António Costa apresentou a descentralização e a regionalização como questões prioritárias assumindo, desde logo, na moção política do PS de 2021, o compromisso de prosseguir com o processo de descentralização de competências para as autarquias e de “promover um debate público nacional alargado sobre a concretização da regionalização nos termos da Constituição.” Por isso, parece oportuno lembrar que o modelo de regionalização que se vislumbra não se enquadra na lógica da subsidiariedade. Delegar competências da Administração Central nas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) continua a ser uma lógica de domínio “top-down”, que não é o mesmo que reconhecer a primazia do poder das instâncias inferiores ou mais próximas dos cidadãos. Tratar-se-á de mais uma fórmula encriptada de estatolatria, de perpetuação do Estado paternalista e dominador. Atribuir poder a instâncias intermédias, criadas artificialmente sem participação da sociedade civil nem legitimidade eleitoral, é uma redundância da função centralizadora e despesista do Estado, permeável a mais burocracia e clientelismos.

A possibilidade de um novo referendo sobre esta temática coloca-nos o desafio de entender melhor os conceitos que lhe estão associados e esclarecer a confusão que mais se tem adensado ultimamente: afirmar a descentralização e a regionalização como sinónimos de subsidiariedade. A subsidiariedade, pela sua natureza de dever de ação positiva não é apenas um garante do poder partilhado; é, antes de tudo, o respeito do poder pré original das instâncias inferiores. Enquanto na descentralização a entidade superior delega poderes, já sob orientação da subsidiariedade as entidades superiores abstêm-se de agir perante as capacidades e poderes de instâncias inferiores, abstenção esta que se justifica num argumento ontológico: a pessoa precede o Estado. Como nos relembra a frase de Francisco Lucas Pires afirmando que a pessoa é anterior ao Estado: “É esta uma verdade em função da qual será o Estado a ter de se humanizar – não o Homem quem tem de se estadualizar…”.

Em suma, a III e IV revisões constitucionais consagraram expressamente o princípio da subsidiariedade na nossa Constituição. Em 1992, surge por condição para compromissos supranacionais; em 1997 já por razões de organização interna do Estado unitário. Mas, em pleno 2022, estamos muito longe de ver cumpridas as exigências da subsidiariedade na ordem jurídica interna, como metaprincípio constitucional que é: quer na esfera político-administrativa; quer na relação entre ordem pública estatal e a autonomia da pessoa e da sociedade civil. E é por isso que de entre os mais importantes preceitos constitucionais que estão por cumprir, um dos mais urgentes é, sem dúvida, o do princípio da subsidiariedade do Estado.