“Beato”. “Betolas”. “Não tem rua suficiente”. “É daquele tipo de pessoas que se afoga em álcool para dizer que a cocaína faz mal”. “É um puritano, não sabe o que é bom”. Eis algumas das reações dos que hoje de mim discordarão. Para vos poupar trabalho, decidi expô-las já – esperando humildemente que sirvam de matriz a usar no post que farão a criticar esta crónica.

Escreveu há alguns dias Fernanda Câncio um artigo para a TSF em que angelicalmente apela ao «direito de se poderem usar drogas com dignidade». Muito altruísta, Fernanda. Explica-nos, munida de eloquência soberba e argumento afiado, que qualquer pessoa que «se mova nos círculos da boémia, frequente concertos e festivais, convive há muito com aquilo a que damos o nome de “drogas”». Mais: diz-nos ainda Câncio que «toda a gente com informação sabe hoje que utilizar “drogas” não implica dependência nem doença (…)». Vamos lá estrebuchar isto.

Câncio está correta quando afirma que «utilizar “drogas” não implica dependência nem doença». Todavia, não constitui condição sine qua non. Ou seja: mesmo sendo verdade, não quer dizer que isso cristalize o seu argumento. Consumir esporadicamente droga não faz de alguém um toxicodependente, mas é um comportamento que poderá desabrochar nessa condição. Pode não implicar obrigatoriamente a dependência, mas está lá o risco de tal acontecer, certo? É tão básico e evidente que não é preciso alongar-me em mais explicações. Aliás, como diria Câncio «toda a gente com informação sabe». Queria só deixar a nota.

Câncio trata o assunto com uma leviandade que me faz confusão. Fala da droga como se de algo cool se tratasse. Talvez nos meios que frequenta seja. Fernanda, acho ótimo que se mova nos círculos da boémia e frequente concertos e festivais. A droga que vê lá a passar é giríssima. Nunca a cocaína que se consome no Lux foi tão supê! Vou-lhe só explicar uma coisa: embora nos sítios que frequenta a droga seja uma coisa super in, há sítios em que desgraça famílias, veja lá! Sabia? Devem andar a consumir uma coisa “supê lá de baixo”, tipo heroína, os pobrezinhos. Se calhar essas pessoas, que vivem na rua e se prostituem para se poderem drogar, nunca leram as suas crónicas e acharam por bem que queriam ser toxicodependentes e viver sem teto. Não perceberam que para serem trendies – como a Fernanda – tinham de frequentar círculos da boémia e ir a festivais. Ir para o bairro e viver sem dignidade foi uma opção deles, que em nada teve a ver com a droga – uma substância que, vejam lá, «não é inócua!». Tudo o que lhes faltou foi um convite para o NOS Alive.

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Venha comigo ao Bairro do Pinheiro Torres no Porto. Apanhamos o 204 e passamos lá uma hora. Verá que as pessoas que consomem em festivais não são bem as mesmas que estão deitadas nas ruas de Pinheiro Torres. Verá que a droga não é uma coisa assim tão trendy e cool como aparenta na sua crónica. A droga mata de verdade, «toda a gente com informação sabe». Diz-nos a Fernanda que «o seu proibicionismo é danoso e irracional». Ora, danoso é, para mim – como humanista na linha de John Donne -, ver estes seres humanos completamente engolidos pela selvática obediência aos instintos primários. (Assim os absorvi quando lá fui distribuir comida em Junho). Como se deixassem de ser pessoas e se transformassem em cães – esses, sim, irracionais. De olhos vazios e com comportamentos impulsivos. Com todas as suas potenciais sensibilidade, vida digna e civismo degoladas pela droga que a Fernanda vê os seus pares faustosamente consumir nesses círculos de elite que frequenta. A iluminação colorida dos concertos não chega ao Pinheiro Torres. Por isso, Fernanda, o que também é «danoso e irracional», é esta sua postura libertina de querer travestir um cancro de algo «não assim tão perigoso» alicerçada no argumento de que «tenho até muitos amigos que fazem».

Saia do Estoril. Saia do Príncipe Real. Vá aos bairros. «Direito a usar droga com dignidade?». Direito a usar droga sequer? Não! Não estimule. Ouça os filhos a chorarem pela mãe enquanto esta se pica outra vez. Está a estimular isso. Repare na criança que até tirava boas notas a Geografia a ser apanhada pelas pastilhas da noite e a hipotecar uma vida digna. Está a estimular isso. Ouça o rapazito de 18 anos que vende o seu corpo para ter dinheiro para “chutar”. Está a estimular isso. Não é cool, Fernanda. Não o faça. Está a destruir vidas. Está a contribuir para a total degradação do ser humano na sua única vida na Terra. Não está a aumentar a liberdade de ninguém. Como é que a estimulação do direito a usar um produto que arranca a liberdade de viver poderá alguma vez trazer qualquer tipo de liberdade? É uma pescada de rabo na boca. O primeiro artigo da nossa constituição é claro quanto à sua posição sobre a dignidade humana: é dever do Estado garanti-la. Atendendo que a toxicodependência constrói uma vida menos digna, é preciso combatê-la frontalmente e não pincelá-la com momentos pontuais de «dignidade», apenas presente quando a pessoa tem a magna «liberdade» de se poder drogar. Nesta lógica, a «dignidade» passaria a existir praticamente só quando a pessoa se drogava. A questão é: quem quer esse tipo de «dignidade»?

Essas liberdades cosmopolitas até são uma boa bandeira política, Fernanda… mas é só para a elite que a rodeia nos festivais e vai consigo para a noite lisboeta. É só para quem tem capital para se ir aguentando na cocaína. E o resto, Fernanda? O resto continua prostrado nas ruas: filhos famintos a chorar, doenças a aumentar, corpos a serem vendidos – o arquétipo oposto da humanidade em cavalgante expansão. O resto continua podre. Com a alma vendida a essa «liberdade» que hasteia até ao sol.

Os seus círculos “brincam às drogas” porque é trendy; já nesta barricada, essa brincadeira leva à trend do suicídio. É o fim de linha. Já sabe, 204.