Para um português deste tempo, a imagem não oferecia outra coisa que não uma sensação de amarga ironia. No anoitecer de Washington, uma multidão silenciosa aproximava-se da escadaria do Supremo Tribunal para homenagear Ruth Bader Ginsburg, falecida faz hoje uma semana, com 87 anos. Cânticos hebraicos foram entoados, cartazes empunhados mas somente sussurrados e velas, milhares de velas, foram deixadas junto a ramos de flores à medida que a noite assentava.
Ontem, Ginsburg tornou-se na primeira judia e na primeira mulher na história dos Estados Unidos a ser velada na colina do capitólio, onde moram o senado e o congresso norte-americanos. A morte da distinta juíza, filha de vendedores de chapéus e estolas em Brooklyn, cruza-se, neste estranho 2020, com uma série de eventos definidores para o seu legado e para a nossa existência: lá, a recandidatura de Donald J. Trump à Casa Branca e a eclosão de uma guerra cultural alegadamente progressista; cá, a erupção de um fenómeno anti-sistémico e a exposição de uma Justiça imerecedora de maiúscula, capaz de albergar os piores dos piores, juízes feitos traficantes de tribunais.
Quando olhei para as fotografias das milhares de velas acesas por Ruth Bader Ginsburg foi esta amargura que saboreei: a democracia americana, imersa em problemas, ainda consegue prestar tributo a uma figura feita no serviço às suas instituições fundadoras; a República Portuguesa, pelo contrário, tem um luto a fazer, não por alguém, mas por si própria; servindo a obscenidade da operação Lex como exemplo suficiente, e sendo escusado falar da tentativa de colocar um ex-porta-voz de Sócrates no nosso Tribunal Constitucional, também este ano.
As ironias, no entanto, não terminaram aí. A comoção americana rapidamente deu lugar a uma batalha política pelo lugar de sucessão a Ginsburg no Supremo, vendo democratas ironicamente exigir a mesma espera que haviam antes negado até à eleição de um novo Presidente e republicanos a defender a confirmação imediata de um novo juiz, que impossibilitaram a Obama em 2016 e permitirão agora a Trump.
Em Portugal, a incongruência igualou o patamar, mas num palco mais cultural do que partidário. Foi quase cómico assistir ao modo como as feministas nacionais desataram a partilhar fotografias de Bader Ginsburg, não sabendo eventualmente nada do seu percurso (ou, quiçá, da sua existência até à notícia do seu desaparecimento). Não o digo sem fundamento, caro leitor. É uma questão de factos e pesquisa, na verdade.
Ruth Bader Ginsburg foi, ao longo da sua vida pessoal, profissional e pública, o oposto do que grande parte das ativistas do feminismo são hoje. Profundamente religiosa, institucionalista e pluralista, duvido que as modas de cancel culture que agora contaminam o debate público colhessem a sua benção, como suspeito que a sua amizade e proximidade ao conservador Scalia conseguisse a aprovação da polícia moral das redes sociais.
Ginsburg era uma promotora de consensos e uma defensora da mudança, sim, mas de forma lenta, gradual e controlada. Grande parte da sua carreira de advogada foi feita a defender a igualdade perante a lei, não só para mulheres, mas para homens. A sua oposição a Roe vs Wade, fundamentada nesse princípio de progresso não imediatista, fez com que a sua nomeação fosse, à data, contestada por grupos pró-aborto da sociedade americana. Para Ginsburg, as reações à mudança abrupta eram uma preocupação. Para o ativismo contemporâneo, sabemos, não é assim.
Abandonando as amarguras e concluindo, os americanos podem – e devem – fazer o seu luto por Ruth Bader Ginsburg. Foi uma figura histórica que perderam esta semana. Nós, mais tarde, noutro tempo, com outra gente, talvez consigamos a felicidade de acender essa vela.