O governo aproveitou o mês de Agosto, quando metade do país estava a banhos e a outra metade preocupada com o combustível para o carro, para publicar um despacho a regular a aplicação da lei de Identidade de Género nas escolas.

Apesar dos melhores esforços do governo para fazer passar este despacho entre os pingos da chuva, neste caso, entre os raios de sol, o caso acabou, por força da sociedade civil, por ocupar a agenda mediática. No momento em que escrevo, a petição pública que pede a suspensão deste despacho já vai em mais de 28 mil assinaturas.

A atenção mediática que surgiu à volta do despacho levou a mais uma acção de campanha do governo, com o Secretário de Estado João Costa a desdobrar a sua presença em qualquer meio de comunicação social disponível. Segundo o secretário de Estado garantiu em todos os microfones que apanhou à frente, este não é um despacho sobre casas de banho e não se trata de uma questão de ideologia, mas de crianças concretas.

Devo dizer que até concordo com estas duas afirmações. O problema não é de facto as casas de banho. Aliás, o problema nem sequer é o despacho: um arrazoado ideológico, vago e trapalhão, aberto a uma quantidade variada de interpretações, incluindo a possibilidade de termos rapazes de 17 anos a frequentar casas de banho com meninas de 12. Se é provável que aconteça? Talvez não, mas o despacho permite-o. E por muito que João Costa venha fazer interpretações bondosas do seu despacho, a verdade é que as suas palavras não têm qualquer força legal, ao a contrário do despacho que assinou e que parece desconhecer (na melhor das hipóteses, porque prefiro acreditar que quando afirma que o despacho só se aplica a crianças que já tenham começado o processo legal de mudança de género é simplesmente porque não sabe que o despacho que assinou fala apenas do género com que se identifica, e não porque esteja propositadamente a mentir).

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Para além disso é verdade que o despacho trata de crianças reais, com dramas reais, muitos deles muito preocupantes (como afirmou um responsável da ILGA, a taxa de intenção de suicídio entre este jovens é de 50%).

O principal problema é que este despacho vem de facto implementar oficialmente em todas as escolas o que já tinha vindo a ser implementado pela porta do cavalo por este governo: a imposição da ideologia de género como doutrina oficial. E o problema é que de facto é a crianças reais que esta ideologia está a ser imposta. É sobretudo, a crianças reais, com dramas reais, que estão a ser usadas como bandeira política pelo secretário de Estado e pelo governo para impor a sua ideologia a todos alunos do país.

Já tínhamos os referenciais para a saúde na Educação para a Cidadania, que permitia ensinar às crianças que o género é uma construção social, que o sexo é biológico mas que cada um depois pode escolher o seu género. Agora, temos um despacho que obriga as escolas, em última instância, a denunciar os pais que se recusem a tratar como menina um rapaz de seis anos que diga que o quer ser.

Este é o real problema: o Estado impor ao país a teoria de que a biologia é indiferente para definir o sexo de uma pessoa, que cada um constrói o seu género independentemente dos seus cromossomas ou dos seus genitais.

Que o secretário de Estado acredite nesta teoria é problema dele, que a queira impor a todas as crianças desde o seis anos, é um problema de todos. É um problema sobretudo dos pais que têm filhos em idade escolar e que, quer queiram quer não queiram, têm os seus filhos doutrinados na ideologia perfilhada por João Costa.

As crianças têm direito a serem crianças. Num mundo hipersexualizado, as crianças têm direito a não serem expostas nas escolas, por obra e vontade do senhor secretário de Estado, à visão da sexualidade que este professa. Num mundo onde a sexualidade é um tema cada vez mais confuso, as crianças têm direito a não serem expostas a essa confusão. A escola deve ser um lugar seguro, onde as crianças podem crescer em segurança, não um laboratório de experiências sociais. As crianças não podem ser cobaias. Sobretudo as crianças que, por razões várias, já vivem precocemente dramas relacionados com a sua sexualidade, devem ser preservadas na sua inocência, deve-lhes ser permitido ser crianças. Obrigar as crianças a confrontarem-se com dramas de adultos é uma agressão que atinge sobretudo aqueles que o secretário de Estado jura querer defender.

Este despacho não é sobre casas de banho, é muito mais do que isto. É mais um passo para impor a ideologia de género nas escolas. É mais uma vez a instrumentalização das crianças para fins políticos. Se há adultos que acreditam que o género é uma mera construção social, que a sociologia se sobrepõe à biologia, que a ideologia se sobrepõe à ciência, têm liberdade para o fazer. Mas façam um favor: deixem as crianças em paz!

José Maria Seabra Duque é jurista