Há precisamente 70 anos, Mirita Casimiro dava voz, num Teatro de revista, a uma canção com música de Raul Ferrão e letra de José Galhardo, que se inspirava no exemplo de patriotismo que Portugal tinha demonstrado face à invasão francesa de 1807.

Podemo-nos hoje interrogar qual o sentido que tinha, em 1952, cantar um apelo patriótico à resistência contra a França numa Europa queimada pela guerra nazi, que tinha destruído, material e moralmente, a França. Mas, na altura, o coração de Portugal estava mais sintonizado com a idealização do heróico passado lusitano do que com assuntos de actualidade. Além disso, a memória das invasões napoleónicas era também uma oportunidade para enaltecer os valores da realidade portuguesa face à força da imagem de Paris e de França, centros da vida cultural europeia durante séculos e, em especial, durante todo o Séc. XIX. A canção enaltecia a Lisboa portuguesa, os valores naturais de que nos deveríamos orgulhar e que, é claro, não desmereciam face à luz intensa que vinha de Paris. Como diz o ditado, presunção e água benta, cada um toma a que quer e, como se sabe, o apelo ao bairrismo funciona sempre bem, seja em Lisboa, Paris ou em qualquer outra parte do mundo.

Mirita Casimiro não gravou a canção. Tal só viria a acontecer dois anos mais tarde pela inigualável voz de Amália Rodrigues. Com Lisboa não sejas francesa, irá nascer um hino de alegria patriótica, que, a par de uma outra canção dos mesmos autores – o fado Coimbra, conhecido internacionalmente também como Avril au Portugal – Amália transformará em pilares da nossa memória musical. Grande Amália, grande o seu legado.

Vem esta singela referência histórica a propósito do movimento a que se assiste agora no Séc. XXI, com pacíficos cidadãos franceses a procurar uma atmosfera de paz que lhes possibilite usufruir da vida ou que lhes proporcione condições de trabalho em modo “nómada”. O ambiente que encontram em Portugal, e que julgam ter perdido momentaneamente na sua terra natal, permite-lhes reencontrar a alegria de viver apesar das diferenças entre França e Portugal, seja na sofisticação de costumes, seja nos meios disponíveis.

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O que está na base deste movimento de pessoas? Benefícios fiscais oferecidos por Portugal, num momento de aperto, a afluentes cidadãos estrangeiros? Sim, mas não só. A França foi ocupada nos últimos anos – alguns dizem mesmo conquistada – por uma imigração agressiva, alienígena em valores e comportamentos, e de onde tem surgido uma sucessão de atentados e assassinatos que perturbaram profundamente a relação dos franceses com o seu meio. Uma invasão que se apoia numa religião intrusiva e autoritária, sem respeito pelos outros que designam de infiéis. Na França de hoje, a liberdade de opinião sobre questões de religião paga-se por vezes com a própria vida.

Procurar um meio de tranquilidade e de convivência segura é, sem dúvida, uma razão que pesa para muitos franceses. À realidade de conflito aberto propiciada pela imigração, acresce a agressividade tradicional dos Celtas autóctones que Júlio César já considerava serem “Galos” pelo seu comportamento machista e colérico. Temos todos presente o movimento dos coletes amarelos, que, surgindo como uma resposta popular ao aumento de uns cêntimos no custo da gasolina, colocou o país inteiro durante meses à mercê da violência urbana. A descoberta de que se vive cercado de violência funcionou como um sinal de alerta e constituiu a prova de que o ambiente se havia tornado tóxico. Assim sendo, porque não beneficiar de um incentivo fiscal no Atlântico, a duas horas de avião de casa?

Não é a França a única origem de cidadãos à procura de paz pois brasileiros, americanos e outros acorrem, em grande número, ao nosso País, em busca da segurança que não vêem nas suas terras. Os franceses que nos descobriram nestes últimos anos foram-se instalando em Campo de Ourique, Santos, no Príncipe Real, Bairro Alto, à volta da Sé ou em vários outros bairros de Lisboa. O efeito urbano é imediatamente visível, com lojas de produtos alimentares e restaurantes a reformatarem-se para esta nova clientela que procura a qualidade a que estava habituada. O que significa, em Lisboa, mais emprego. Mas maior é o impacto a nível do imobiliário: não nos devemos esquecer da Lisboa decadente e em ruína, que deu lugar a bairros renovados, de construção nova ou reabilitada. Quando se ouvem murmúrios sobre o efeito nefasto dos estrangeiros no preço das casas, convém ter presente o que era Lisboa (e o Porto) antes desta invasão pacífica, e dos ganhos que obtiveram proprietários, empreiteiros, trabalhadores da construção, fornecedores de materiais, arquitectos e decoradores. Foi emprego que alimentou muitas famílias nos últimos anos, mas que os extremos do espectro político desprezam olimpicamente, optando por manifestar reflexos saudosistas e bairristas, que se confortam de máximas passadistas do género, somos pobres, mas felizes.

Até aqui, a convivência tem sido profícua e pacífica para todos. Mas como nada é eterno, convém estar atento. As reacções nacionalistas anti estrangeiros, mesmo para aqueles que trazem o capital que nós não temos e não têm objectivos de conquista, começam a ter eco, ainda que tímido, nos Partidos políticos do centro. É um tique populista em que é fácil cair e que é difícil de contrariar. As razões pelas quais somos apreciados podem desparecer. Não devemos, por exemplo, dar como adquiridos os brandos costumes, que nos tornam naturalmente aptos à convivência em paz, qualidade que os estrangeiros que se estabeleceram em Portugal tanto apreciam. O problema é que nem sempre fomos assim e em vários momentos da nossa História não existiram brandos costumes, tal como aconteceu entre 1828 e 1834, na guerra civil entre Absolutistas e Liberais a que sanguinariamente nos entregámos. Nem durante a Primeira República entre 1910 e 1926, onde a violência política nas ruas não ficava atrás do que vemos em Paris. Sem falar do tratamento que o SEF fez no aeroporto, no passado recente, a estrangeiros não documentados. Brandos costumes talvez, mas muito por força da pressão que Salazar exerceu sobre o comportamento lusitano. Memórias que, entre outras, se vão perdendo no tempo. Para não estragar o que temos, convinha saber o que queremos e o que procuramos. Um dia podemos vir a ter saudades.

Mas o risco de ruptura deste romance entre portugueses e franceses vem também do lado francês. São cada vez mais insistentes as queixas das burlas a que foram objecto na compra de habitações mal reabilitadas e com problemas de construção e estabilidade. Como foi possível que os serviços camarários, tão prestimosos a impor a sua burocracia, pelos vistos inútil, tenham assistido mudos e quedos a esta realidade? Onde está a regulamentação para a venda de casas antigas ou reabilitadas? É só incompetência?

E depois há o tipo de vida que temos para oferecer aqui. O que significa para um francês afluente deixar Paris e mudar-se para Lisboa? Eça de Queiroz deu-se ao trabalho de nos explicar o que aconteceu a Jacinto, herói do livro A Cidade e as Serras, quando, nos finais do Séc. XIX, abandonou Paris para se estabelecer num idílico lugar no Douro. A história do livro é demasiado conhecida para ser necessário recontá-la e, como em muitas das descrições que Eça nos deixou, a sua leitura é imune ao efeito do tempo. O que é um facto hoje é que, para quem vive em Paris e tem o hábito de ir frequentemente a um Concerto de música clássica, a uma Ópera, a uma Exposição de Pintura ou ao Teatro, o panorama em Lisboa provoca alguns calafrios. É verdade que temos a Gulbenkian que oferece alguns Concertos ao longo do ano e uma sala de Ópera que, no seu lindo edifício, alberga meia dúzia de representações por ano, feitas aliás sem grandes recursos. Mas a comparação da vida cultural de Lisboa com a de Paris – ou com a de qualquer grande cidade de França – revela um fosso abissal. Certo que o Jacinto de Eça não dispunha em 1900 da internet que hoje mudou radicalmente o conceito de deslocalização. Só que nem tudo é virtual.

Neste panorama, o que fazem os franceses que elegeram Lisboa para viver? Pois organizam-se, convidam músicos amigos para tocar em Portugal, abrem Galerias de Arte, apoiam Festivais de Música no interior, organizam sessões de Teatro e Ciclos de Cinema. E, de repente, a vida cultural em Portugal ganha dimensões inesperadas. Mas tudo isto pode revelar-se etéreo e não vingar. Convinha estarmos atentos, aproveitar o balanço e tentar dar o apoio necessário. Porque o efeito desta presença cosmopolita não é exclusivamente económico. Lisboa e Porto contam hoje como habitantes,  escritores, artistas, criadores, gestores – muitos com reconhecimento e influência global – disponíveis para partilhar o seu património imaterial com quem os acolhe tão bem.

O momento que vivemos em Lisboa de convívio internacional aconteceu algumas vezes na nossa História. Ocorreu na época dos Descobrimentos ou quando estivemos, por uma razão ou por outra, no centro dos caminhos do mundo, como no período da Segunda Guerra Mundial. Mas que Lisboa não seja apenas aquilo que ouvimos responder no filme Casablanca; a resposta à pergunta do que tão especial havia em Lisboa foi, recorde-se, “o avião para a América”.