O novo podcast do Observador chama-se “Matar o Papa”. A história: a tentativa de assassinato de João Paulo II, em Fátima, um ano após a que sofreu em Roma. O Culpado: o então Padre Juan Fernández Krohn. A causa: o Papa ser, no entendimento de Krohn, um infiltrado comunista. Mas as peças deste jogo são muito mais complexas e vão para lá da simples intriga criminal. O que está em causa na história e o que depois dela se conclui – mesmo tentando não cair em spoiler – revela extraordinariamente mais sobre as nossas miopias coletivas do que possamos esperar.

Na verdade, a primeira delas é a miopia de Portugal sobre si próprio. Quando se olha para a forma de narrar o país, parece que existe uma cronologia paralela, que raramente é referida, a menos que seja para dela se tirar proveito. Fátima é um exemplo disso. Se há algo que o podcast mostra, é a forma como aquilo que se passou naquele lugar deserto, em 1917, influenciou o decurso do séc. XX. No entanto, Fátima parece continuar a ser tida como um fenómeno marginal e simplificado ao ponto de ser divulgado como construção, manipulação e alienação. Ainda assim, no interior das casas, nas vitrines das lojas, nas prateleiras dos restaurantes e cafés, nas bermas das estradas ou dentro dos carros, é mais provável encontrar uma referência a Fátima do que a uma imagem de Vasco da Gama, um livro de Camões, ou um brasão de D. Afonso Henriques. Isso diz tanto do país, como do snobismo intelectual que se multiplica no modo de contar e explicar o pais. Até porque, infelizmente, “parolo” continua a ser o adjetivo fácil para o que não se compreende, tal como é sempre refrescante perceber que as “massas populares” só têm razão quando se revoltam contra “o grande capital”.

[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo Podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.] 

Nesse domínio, não deixa de ser interessante que, sem pruridos ou vergonha, Ronald Regan, presidente dos Estados Unidos, dirigindo-se aos deputados portugueses, na Assembleia da República, tenha dito que “nas orações de pessoas simples em todo o mundo, pessoas simples como os pastorinhos de Fátima, reside mais poder do que em todos os grandes exércitos e estadistas do mundo”.

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A segunda miopia prende-se com o lugar mediático do Papa. Têm sido notícia várias formas de incompreensão às reformas levadas a cabo pelo Papa Francisco, desde as chocantes orações a pedir a sua morte, promovidas por grupos que se assumem como católicos, até às simples dúvidas acerca de algumas opções práticas. Em grande parte delas, a narrativa marca que “este Papa” é pouco consensual face aos anteriores. Ora, o podcast mostra que não é bem assim. João Paulo II, assim como Paulo VI, João XXIII ou Pio XII, foram tão, ou até mais, contestados que Francisco. A diferença estará, talvez, nos meios que hoje dispomos para divulgar essa mesma contestação.

A esta distância, quando temos um Papa que, ainda no século passado, foi vítima de duas tentativas claras de assassinato, não é despiciente pensar que a atenção mediática, que alguns grupos dentro da Igreja têm merecido, é claramente excessiva. E, se até o Papa João Paulo II, conhecido opositor do Comunismo, foi visto por alguns, como um perigoso anti-cristo soviético, não é de estranhar que o Papa Francisco, proclamado anti-papa e destruidor dos valores tradicionais, ainda acabe por ser quem, na verdade, os está a defender.

Por fim, a última miopia pretende-se com o lugar da rejeição na história. Aliás, se há algo que na personagem de Krohn se destaca é o sentimento permanente de exclusão. Juan Fernandez Krohn é um rejeitado, seja por diversos grupos católicos, seja pela linha doutrinal implementada no pós-Vaticano II. No entanto, o seu caso é uma espécie de micro-exemplo de algo maior. Como Robert Gerwarth demonstra, em The Vanquished, obra centrada na história da Europa entre 1917 e 1928, a sensação de perda e de derrota foi fundamental para aumentar e alimentar os ciclos de violência que reinaram no séc. XX. Do mesmo modo, a noção de comunidade de nicho, alimentada pela denominada cultura do politicamente correto, que visa uma higienização da linguagem e do espaço publico, é um caminho mais que certo para o contrário. Isto porque, se como Gerwarth escreveu, o tratado de Versalhes potenciou mais a colonização dos derrotados do que a prevenção da guerra, também corremos o risco de, ao tentar “corrigir” os modos das culturas, acabarmos por as entrincheirar e enrudecer, até ao ponto em que a última solução se torne matar o “Papa”, seja ele qual for.