Possivelmente uma grande maioria dos portugueses não sabe do que estamos a falar. Não votam, não opinam e, tal como em questões de limitação dos direitos, apenas aceitam o que o Estado lhes dita. Assim, as soluções terão de partir de quem conhece os problemas.

A maior parte dos portugueses não conhece a existência de algumas especialidades médicas. A especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) é uma delas. Medicina Interna, Pneumologia, Imuno-alergologia, Medicina Desportiva, Medicina do Trabalho ou Saúde Pública são outros exemplos.

E na verdade, também os especialistas em MGF não têm sabido valorizar a sua especialidade.

É importante que os cidadãos percebam que os médicos levam muitos, muitos anos a se formarem condignamente. E continuam pela vida fora a estudar, a candidatarem-se a concursos, a investigar, etc.

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O que acontece nos dias de hoje é que um médico, após terminar os seus seis anos de licenciatura, não tem autonomia ou competência para trabalhar autonomamente. Nessa altura, inicia um estágio geral já remunerado, a que se dá o nome de Ano Comum e depois escolhe a especialidade que quer integrar.

Se escolher MGF, fará diversos estágios e formações durante quatros anos. No final desses quatros anos é sujeito a um exame bastante complexo e com várias avaliações. Se chumbar é considerado inapto a entrar nos quadros da função pública e a exercer a especialidade médica.

O que acontece há muitos anos e nunca devia ter sido ser permitido. É que este médico que chumbou inscreve-se como “tarefeiro” numa empresa de prestação de serviços e será, através desta empresa, contratado pelo Estado, o mesmo Estado que o considerou incompetente!

A solução agora proposta pela Senhora ministra é formalizar o que, grave e incorrectamente, já acontece há muitos anos. Isto é como um interno de obstetrícia fazer o internato, chegar ao fim, fazer o exame, chumbar e, na mesma, ir fazer partos, através de uma empresa de prestação e serviços, já que os especialistas “encartados” estão no privado ou no estrangeiro. Não faz sentido. Nenhuma mãe quereria isso para o seu filho.

Casos há, em que as queixas contra estes profissionais não especialistas se vão avolumando. Mas os profissionais chegam à idade da reforma antes que esses processos dêem em alguma coisa.

Estes tarefeiros, a quem agora quer ser dada uma lista de utentes, normalmente exercem actividade nos Serviços de Atendimento Permanente. São colegas que por vezes nem português sabem falar. E ao longo dos anos o que é que nós, médicos, eu incluído, fizemos por isso? Nada!

Os serviços de pessoal dos Agrupamentos de Centros de Saúde admitem “off-the-record” que esses médicos não têm competência, mas que, se não os aceitam, até porque os menos maus vão para as urgências hospitalares onde recebem um pouco mais, ficam sem ninguém para fazer esses serviços.

Repito, a proposta do governo de entrega de uma lista de utentes a médicos de MGF “sem-especialidade” é apenas uma legalização de uma aberração já existente.

No passado dia 16 de Julho houve uma pequena manifestação à porta do ministério (não sei de quem foi a ideia de organizar uma manifestação num sábado à tarde em Julho…).

Não aprovo manifestações que, se extemporâneas, até podem fragilizar a luta. Mas uma tomada séria de posição, por parte dos profissionais já devia ter acontecido há muito tempo. Na verdade, os enfermeiros têm tido, ao longo dos anos uma postura de muito maior defesa interpares. Não chamo de corporativismo. Chamo de defender aquilo em que acreditam.

Os médicos hiper-sub-dividem-se: privado vs público; cuidados primários vs hospitalares; internos vs especialistas, 35 vs 40 vs 42 horas; exclusividade vs não exclusividade. E, dentro dos MGFs, UCSPs vs USF A vs USF B. A isto chamo dividir para reinar.

Em relação aos MGFs, os problemas têm-se avolumado com a reforma dos colegas mais velhos.

A assinatura anual das cartas de compromisso entre as Unidades e os ACES/ARS é vista pela tutela como uma aceitação de que concordamos com tudo. Não tem havido coragem de lutar contra indicadores que não fazem o mínimo sentido. Não tem havido coragem dos profissionais de defender os internos que no 3º e 4º anos vão fazer atendimento a doentes sem-médico sem quaisquer condições. Não tem havido coragem destes internos para se recusarem a trabalhar nessas condições.

A maioria dos portugueses não conhece a reforma dos cuidados primários, especialmente levada a cabo durante a tutela do ministro Correia de Campos, mas a verdade é que essa reforma “enquistou-se”. Os profissionais das USF B nunca deviam ter aceitado fazer menos de 40 horas.

A solução para toda a população ter acesso a um especialista em MGF? Fácil, muito fácil, no meu ponto de vista:

  1. alargamento do modelo USF B a todas as unidades que mostrassem resultados para isso;
  2. todos os utentes que têm sub-sistemas ficariam sem médico atribuído e eventualmente agrupados nos doentes “sem-médico” ou serem apenas observados no privado, aliás como já acontece;
  3. todos os não utilizadores, ficariam também sem-médico;
  4. listas dos médicos de família seriam reduzidas, pois na prática só ficariam os grandes e necessitados utilizadores;
  5. o número de indicadores pelos quais somos avaliados também seria diminuído
  6. algumas consultas de saúde infantil seriam feitas por enfermeiros com formação (consulta dos 2, 4 e 9 meses);
  7. algumas consultas de saúde materna e planeamento familiar também seriam feitas por enfermeiros com formação;

Com esta redução de trabalho, dar-se-ia X horas por mês para observar doentes sem-médico, numa UCSP próxima.

As contas serão fáceis de fazer.

Agora, com tanta desunião na classe, será complicado lutar por algo em comum. Tenho esperança de que os sindicatos, a APMGF e a USF-AN possam defender aquilo em que acreditamos em sede de negociação com um governo de maioria absoluta que tem todas as condições para reorganizar o SNS.