Foi há já alguns anos que, pouco antes de começarem as férias natalícias, fui falar do Natal aos alunos da secção infantil do colégio de que era capelão. Tendo em conta que me dirigia a crianças de 4 e 5 anos, falei-lhes de Maria e de José, da sua ida para Belém, talvez do burrinho que os transportou, dos pastores que adoraram Jesus recém-nascido e também dos Magos do Oriente, que iniciaram a tão deliciosa tradição dos presentes de Natal.

Já tinha dado por concluída a minha breve intervenção quando uma pequenita, que não levantava do chão mais do que um metro, se tanto, puxou pela minha manga e, com gesto inquisitorial, me interrogou: “- E o Herodes?!”

É verdade que, no meu pueril relato natalício, propositadamente evitei a referência ao tirano que quis matar o Rei dos judeus que acabara de nascer, por temor a que o destronasse, e que depois mandou assassinar todas as crianças de Belém, com menos de dois anos de idade. A crueza deste episódio, a que se ficou a dever o forçado exílio da sagrada família no Egipto, até ao seu regresso a Nazaré, só depois da morte do dito Herodes, não era adequada ao público a que me dirigia, nem era essencial à história do nascimento de Jesus. Mas, pelos vistos, aquela amostra de gente não ficou satisfeita com a minha versão pedagogicamente correcta, mas historicamente incompleta, do Natal e, por isso, censurou-me a omissão da referência ao despótico Herodes.

A intervenção daquela pequenita, que já deve ser adulta, continua actual e pertinente, sobretudo para quem, como eu naquela ocasião, tende, nesta quadra natalícia, a branquear a realidade mundial. É compreensível que, na época natalícia, se omitam as referências bélicas, em atenção à mensagem de amor e de paz que o Filho de Deus veio trazer ao mundo. Mas, se Jesus quis, na pobreza do seu nascimento e na perseguição de que então foi alvo, identificar-se com os mais pobres e perseguidos, não pode faltar, na celebração cristã do Natal, a lembrança e a prece por todos os que, em qualquer parte do mundo, mais sofrem, nomeadamente por razão da sua fé cristã.

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No passado dia 13 de Novembro, o Presidente da República francesa, Emmanuel Macron, alertou a comunidade internacional para a gravidade da situação que se vive num país africano de língua oficial portuguesa: “Em Moçambique, mais de cinquenta pessoas foram decapitadas, mulheres houve que foram raptadas e povoações inteiras foram pilhadas e incendiadas. São bárbaros que deturpam uma religião de paz, para semear o terror: o terrorismo islâmico é uma ameaça internacional, que exige uma resposta internacional.”

Os factos falam por si: a forma como as províncias do norte de Moçambique estão a ser sistematicamente vandalizadas, por grupos de terroristas islâmicos, é de uma imensa gravidade, não apenas pela monstruosidade dos crimes praticados – homicídios em massa, também de mulheres e crianças, decapitações, violações, raptos, pilhagens, etc. – como também pelo enorme número de vítimas deste flagelo, a que a comunidade internacional permanece indiferente.

Para além das vítimas mortais – só na província de Cabo Delgado já foram mortos, nos últimos dois anos e meio, mais de 350 pessoas – há também a lamentar os inúmeros deslocados e refugiados.  Como a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) noticiou, “agrava-se a situação humanitária em Cabo Delgado, com a chegada de barcos com milhares de novos deslocados. O Bispo de Pemba, durante uma acção da Cáritas de Moçambique (…), reconheceu que seriam já cerca de 10 mil pessoas só nos últimos dias e que continuam a chegar”.

“A violência que se faz sentir na região por causa dos ataques de grupos armados que reivindicam pertencer ao Daesh, o Estado Islâmico, está a provocar a fuga da população”. Segundo D. Luís Lisboa, Bispo de Pemba, num vídeo divulgado pela sua diocese, “os deslocados estão a fugir das cidades vizinhas e das ilhas”, sendo que algumas dessas pessoas fazem-no “por causa dos ataques que sofreram, outras saem das suas aldeias preventivamente, porque têm medo”. “É uma situação generalizada de pânico.”

Com excepção das instituições católicas, como a Cáritas e a Fundação AIS, não consta que outras entidades apoiem, no terreno, as populações indefesas, nem prestem a necessária assistência aos refugiados, muitos deles a viver em condições infra-humanas. Era de esperar que a ONU, ou a OUA, pudessem ajudar o exército e as forças de segurança moçambicanas, insuficientes para o restabelecimento da paz e da ordem na região, agora assolada pelo terrorismo de inspiração islâmica.

É significativo que o Presidente francês defina o Islão como uma “religião de paz”, não obstante a referência ao “terrorismo islâmico”, justificada pelos graves atentados terroristas perpetrados por muçulmanos em França. É óbvio o sentido político da afirmação de que a crença islâmica é uma “religião de paz” – o número de franceses muçulmanos não é desprezível e tende a aumentar – e explica-se na medida em que todas as religiões devem ser permitidas num regime democrático, em virtude do princípio da liberdade religiosa e de consciência. Mas sem esquecer que nenhum crime, por mais ‘religioso’ que aparente ser, pode ser tolerado num Estado de direito. Ninguém deve ser morto, preso ou perseguido pelas suas crenças, mas também nenhum crime ou ofensa pode ficar impune, qualquer que seja a motivação do injusto agressor.

Se às autoridades civis se exige, mais do que tolerância, respeito por todas as religiões, também se lhes pede que zelem pela paz social e não permitam que fique sem castigo nenhum atentado contra os direitos fundamentais dos cidadãos, quaisquer que sejam as convicções religiosas ou políticas dos agressores, ou das vítimas. Às autoridades religiosas pede-se que condenem, sem ambiguidades, todos os actos de violência realizados pelos seus fiéis em nome da sua religião: outra atitude faria com que esse credo, por via dos seus responsáveis, fosse conivente, senão cúmplice, desses crimes.

Seria injusto considerar todos os muçulmanos como potenciais terroristas, mas seria desejável que as autoridades religiosas islâmicas fossem mais enérgicas e eficazes no repúdio das acções criminosas realizadas por indivíduos, ou grupos, terroristas que se proclamam muçulmanos, como é o caso do autodenominado Estado Islâmico e do Boko Haram. A Igreja católica, cujo principal mandamento é o da caridade e com todos pratica a misericórdia e o perdão, não hesita em excomungar, ou seja, expulsar do seu seio, aqueles que, dizendo-se seus fiéis, praticam crimes abomináveis, se não se arrependem, nem pedem perdão, como é o caso, entre outros, dos que, consciente e voluntariamente, praticam o aborto.

O Corão, como aliás a Bíblia, condena à morte, por apedrejamento, os adúlteros. Assim acontece em alguns países islâmicos, mas não, graças a Deus, em nenhum país cristão, porque Jesus Cristo, ao instituir o mandamento novo da caridade, revogou esse preceito bíblico. No entanto, a religião que é tão severa na punição da infidelidade conjugal, o não é do terrorismo: não consta que nenhum maometano, por ter praticado, em nome da sua fé, uma acção terrorista, tenha sido privado, pelas competentes autoridades religiosas, da sua condição de fiel do Islão. Se esta crença é, na realidade, uma “religião de paz”, deve-o provar, não apenas com palavras de condenação da violência – como as proferidas, a este propósito, pela Organisation of Islamic Cooperation (OIC) e pelo Conselho Islâmico de Moçambique – mas com a efectiva condenação e erradicação de quem, em nome de Alá, protagoniza actos terroristas.

Segundo a tradição cristã, quando ocorreu o nascimento de Jesus em Belém de Judá, uma multidão de anjos apareceu aos pastores que estavam na zona, cantando: “Glória a Deus, no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14). Que bom seria que todos os pastores, de todas as religiões, também os cristãos, fizessem seu este cântico de Natal, para que o nascimento de Jesus Cristo seja uma bênção de amor e de paz, para todos os crentes e para todos os homens de boa vontade.

NOTA. – Texto do tweet de Emmanuel Macron: “Au Mozambique, plus de 50 personnes ont été decapitées, des femmes kidnappées, des villages pillés puis incendiés. Des barbares détournent una religion de paix pour semer la terreur: le terrorisme islamiste est una menace internationale qui apele une réponse internationale”. A tradução no texto é do autor.