O jurista britânico de origem paquistanesa, muçulmano praticante, Karim Khan, pediu ao Tribunal Penal Internacional (TPI) a emissão de mandados de captura para líderes políticos israelitas.

Trata-se do mais recente e mediático caso de “lawfare”, a sistemática e deliberada exploração das leis da guerra, tendo em vista constranger vontades que a elas se vinculam, obrigando-as a limitar a sua acção e a arriscar numa zona de cinzento, que conduza a acusações de crimes de guerra, em tribunais e no tabuleiro mediático para, em última análise, quebrar a vontade política, limitar o uso da força armada e dividir e desmoralizar o inimigo.

É esta a razão pela qual os movimentos islamistas (Hezbolah, Hamas, Al Qaeda, Daesh, houthis, etc.), se empenham em filmar e publicitar (e por vezes encenar) os resultados de ataques inimigos em que haja baixas civis, focando-se predominantemente em imagens de cadáveres de crianças e mulheres.

Designa também aquilo a que alguns já chamaram de “Cavalo de Tróia da Democracia”, referindo-se ao facto de, nos últimos 30 anos, a utilização, interpretação e pressão da lei internacional se terem afastado da órbita dos Estados de Direito, e caído nas mãos de ONG’s, estados autoritários, indivíduos e grupos activistas, movidos por ideologias que integram a utopia kantiana, o pacifismo radical, o repúdio do capitalismo, o complexo de culpa ocidental, e um progressismo internacionalista que se apropriou paulatinamente das categorias morais.

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Estas ONG’s tiveram um papel fundamental na instalação do TPI, que não teria surgido sem a participação activa da Amnistia Internacional, No Peace Without Justice , HRW, etc.

Acresce que as ONG são, na prática, os seus principais procuradores, como se deduz do facto de a esmagadora maioria dos casos presentes ao Procurador do TPI terem sido apresentados por elas.

A criação do TPI foi vista como um ganho civilizacional pelas elites políticas e culturais europeias. As lideranças políticas ratificaram o Estatuto de Roma quase sem discussão, encarando-o como “avanço civilizacional” ou “progresso” no Direito Internacional (DI). Em Portugal, a Constituição foi expressamente revista para esse efeito, acolhendo uma significativa cedência de soberania.

Isto faz algum sentido num país pequeno e fraco, que se considera seguro nas suas fronteiras, e que entende que o DI é uma das ferramentas essenciais para prosseguir os seus interesses e sobreviver num mundo onde existem potências muito mais fortes.

Mas não é esse o mundo real. Este, no qual existimos, é aquele em que nem todos aceitam as mesmas regras, em que o respeito pelo DI não é uniforme e em que, por exemplo, forças portuguesas actuam fora das fronteiras, podendo encontrar-se subitamente à mercê do fenómeno da lawfare, pelo que o “avanço civilizacional” pode rapidamente revelar-se, em linguagem mais vernácula, um autêntico tiro no pé. Efectivamente, ao concordar que os seus decisores e executores, militares e políticos, possam ser processados por “crimes de guerra”, os países democráticos aceitam implicitamente combater em condições assimétricas e desvantajosas.

É verdade que o TPI é subsidiário, mas também é verdade que a sua acção depende muito do activismo judiciário de certos magistrados e procuradores, como é o caso do Sr. Karim Khan e da sua antecessora, a também muçulmana Fátima Bensouda.

A apreciação concreta de determinados casos pode até levá-los a concluir que o Estado do acusado não agiu como eles entendem que devia agir. É o caso actual, com Karim Khan a sustentar que não tem provas de que o sistema judicial israelita esteja a lidar com as alegações de crimes de guerra.

Ora um militar que, algures numa missão, esteja envolvido num incidente, pode ver o seu nome chegar ao radar do Procurador por influência de ONG’s, activistas políticos, pessoas com agenda, etc., e detido às ordens do tribunal, em qualquer local onde esteja.

Uma vez que os militares desempenham por vezes missões em teatros onde os seus inimigos não respeitam deliberada e sistematicamente as “leis da guerra”, são como lutadores lançados para um ringue de boxe com os punhos atados atrás das costas, não podendo responder de forma adequada ao que deles se exige e correndo riscos físicos e legais inaceitáveis e desnecessários. Só poderão libertar um punho se houver provas jurídicas, de que levaram um soco.

No Verão de 1999, a Amnistia Internacional, que deu larga voz e apoio jurídico e financeiro a fundamentalistas islâmicos apologistas da jihad, incentivou e apoiou uma queixa de um grupo de activistas europeus e norte-americanos, alegando crimes contra a Humanidade, cometidos pelos decisores e executores da campanha aérea da OTAN sobre o Kosovo. Apesar de se tratar de países com sistemas judiciais fiáveis, independentes e funcionais, e alguns deles nem sequer terem ratificado o Estatuto de Roma, a Procuradora admitiu jurisdição sobre o caso e abriu um processo. Ou seja, o TPI, que inclui uma maioria de magistrados de países que não são sequer estados de direito, considerou-se competente para investigar, acusar e eventualmente julgar, os líderes políticos e militares dos países ocidentais, estados de direito sólidos e avançados, porque alguém com determinada agenda política e ideológica os acusou, e os pode acusar num futuro ilimitado, já que trata de crimes imprescritíveis.

O facto de o Conselho de Segurança das Nações Unidas poder invalidar qualquer acusação formal, é uma salvaguarda falaciosa, porque está sujeita ao veto de qualquer dos membros permanentes o que, na prática, confere total liberdade de acção ao Procurador.

Por exemplo, os militares portugueses que combateram em África, que estiveram nos Balcãs, no Afeganistão, na República Centro Africana, e nos outros teatros onde Portugal projectou e projecta forças podem, em qualquer momento da sua vida, vir a ser incomodados, processados e julgados por alegações, fundadas em meros boatos ou fake news, de terem cometido crimes de guerra, alguns dos quais imprescritíveis por definição. Acções levadas a cabo por militares, colectiva ou individualmente, que não possam ser qualificadas como de legítima defesa, poderão ser sempre sujeitas a investigação. E a definição de legítima defesa que está em causa é a de contornos policiais, que exige que o agente seja vítima de uma agressão actual e use meios proporcionais. Proporcionalidade esta que poderá vir a ser avaliada a posteriori e que, por isso mesmo, funciona como uma espada de Dâmocles, permanentemente suspensa sobre a cabeça do gestor ou do executor da violência organizada. Nesta perspectiva judicializada, se a acção se desenvolver depois da agressão terminada, não é provável que seja considerada legítima defesa, o que coloca sérias reservas à resposta, por exemplo, a tiros oriundos de um determinado local. Terá sido o último tiro? Pode-se responder ao fogo? Não é destas situações, nas quais o soldado é confrontado com dilemas policiais, que tratam as guerras reais.

Se um militar violar de algum modo as Regras de Empenhamento aplica-se-lhe, por definição, o direito nacional, mas são inúmeras e vagamente objectivadas as situações nas quais pode cair sob a alçada do TPI. Qualquer grupo de activistas pode tentar processar qualquer indivíduo por “crimes de guerra”, por exemplo em qualquer país cuja legislação compreenda a “jurisdição universal”.

Ariel Sharon, na altura 1º ministro israelita, foi processado em 2001 por activistas palestinianos, ajudados pela Amnistia Internacional, e acusado por um tribunal de Bruxelas, que se julgou competente. A tal ponto que o Parlamento belga se viu forçado a alterar a lei para evitar este tipo de aproveitamentos, o que levou ao arquivamento do caso, em Setembro de 2003, a tempo de evitar que activistas antiamericanos conseguissem processar num tribunal belga, George Bush Sr., Colin Powell, Norman Schwarzkopf, etc., por alegados crimes de guerra no Iraque. Já em 2010, um grupo de activistas anti-israelitas, processou Ehud Olmert, Ehud Barak e Tzipi Livni, por “crimes de guerra” cometidos durante a operação Cast Lead, época em que eram 1º Ministro, Ministro da Defesa e Ministra dos Estrangeiros, respectivamente.

Já no domínio do delírio, em Junho de 2010, a Avocats Sans Frontières (ASF), uma ONG belga, lançou uma acusação de crimes de guerra contra oficiais belgas acusando-os de na década de 1960, estarem envolvidos na liquidação de Patrice Lumumba.

Num outro exemplo, após os atentados de 11 de Setembro, a HRW e outras organizações inspiradas na mesma ideologia, exigiram provas jurídicas, de que os atentados tinham sido da autoria da Al Qaeda, e de que esta operava a partir do Afeganistão, antes de se usar a força.

As ONG’s entram também frequentemente com acções em tribunais nacionais (com legitimidade para julgar o crime em questão) contra militares ou o Estado.

Por exemplo a HRW intentou uma acção contra o Canadá, pela entrega de prisioneiros ao Afeganistão.

Indispensáveis na defesa do humanitarismo na guerra, estas ONG’s ganharam um peso excessivo, e algumas delas parecem Robespierres colectivos, ardendo em ânsias de virtude. Almejam a judicialização das relações internacionais, o que traz consigo o perigo de substituir a tirania dos governos pela dos juízes, convindo relembrar que historicamente foi a ditadura dos virtuosos que levou à Inquisição e à caça às bruxas.

A sua acção, alegadamente bem-intencionada, promove saltos utópicos nas leis da guerra, que procuram ancorar numa cosmovisão essencialmente virada para a culpabilização dos países democráticos, nos quais esses direitos são mais protegidos e onde, em função disso mesmo, as ONG’s podem existir como tal. O efeito deste utopismo é perverso, porque carrega com o ónus de proteger as populações, o contendor tecnológica e civilizacionalmente mais avançado, relativizando e ignorando a responsabilidade, primária e óbvia, dos que escolhem usá-las como escudo e plataforma de tiro. Uma situação que, paradoxalmente, recompensa as forças que cometem deliberados crimes de guerra contra a sua própria população, por reconhecerem que, face às circunstâncias, é essa a melhor estratégia contra um inimigo escrupuloso.

Por várias razões, projecções freudianas e racionalizações, desde a questão palestiniana a velhos atavismos antissemitas, Israel é, actualmente, o país mais alvejado pela lawfare, o que se traduz na multiplicação de processos por crimes de guerra abertos em tribunais de vários países, ao abrigo da jurisdição internacional, contra dirigentes políticos e militares israelitas. O que não deixa de ser irónico porque, mesmo enfrentando guerras existenciais, contra inimigos sem quaisquer escrúpulos éticos, legais ou morais, é provavelmente o país que tem o melhor registo histórico no respeito do jus in belo.

Todavia, actualmente todas as democracias enfrentam, ou podem vir a enfrentar, o mesmo tipo de pressão e já hoje os planos militares são constantemente adaptados para se conformarem a interpretações radicais e ideológicas do jus in belo. De tal modo que os exércitos ocidentais não podem dispensar os conselheiros jurídicos, chamados a pronunciarem-se previamente sobre a legitimidade de alvos, armas, tácticas e projécteis. É certo que prevalece a ideia de que, no que respeita a estados com estruturas jurídicas capazes de investigar e julgar por crimes de guerra, a intervenção do TPI não será, em abstracto, necessária ou expectável, dado o Princípio da Complementaridade previsto no Estatuto de Roma.

Os EUA, Israel e outras democracias ocidentais podem reivindicar tais características, algumas não são sequer subscritoras do Estatuto de Roma, mas isso não impede, como se vê, que sejam alvos privilegiados da lawfare.

O facto é que as molas reais dos acontecimentos raramente se apoiam apenas na impessoalidade da letra das leis, como se não fossem as pessoas com as suas crenças, motivações e paixões que as accionam, como se vê no presente caso.

Na verdade, apesar de no artigo 17º do Estatuto de Roma, estar bem expresso o princípio do non bis in idem , é sempre possível alegar que o sistema interno não é fiável, que o país não julga porque não quer, que finge que julga, ou que não tem o crime tipificado no seu ordenamento jurídico, como acontece  com o caso israelita, especialmente quando uma magistratura activista toma conta dos destinos destes tribunais.

Não é por acaso que o paradigma do juiz activista, o espanhol Baltazar Garzón, encontrou refúgio no TPI, no momento imediato à sua suspensão da Audiência Nacional, exactamente por prevaricação no uso dos seus poderes em causas de activismo ideológico. Não é também por acaso que a ex-Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navy Pillay, tenha nomeado para o painel que fez o follow-up, do desmentido Relatório Goldstone, examinando a independência e o profissionalismo do sistema judicial israelita, o jurista alemão Christian Tomuschat, a americana Mary Davis e o malaio Param Cumaraswamy, que faziam parte de uma ONG conhecida pelo seu activismo anti-israelita, a International Commission of Jurists.

Tomuschat, por exemplo, ficou conhecido por ter verbalizado a indignação pela liquidação do chefe espiritual do Hamas, o Xeque Yassin, argumentando que um terrorista não é um combatente, sugerindo portanto que não lhe são aplicáveis as leis e regras dos conflitos armados, mas sim o de acusados civis.

Voltando aos assessores jurídicos nas operações militares, trata-se de um conceito com a louvável intenção de evitar que a guerra se transforme em pura selvajaria, mas que acaba por ajudar a atar apenas as mãos das organizações militares ocidentais, que mais respeitam o direito na guerra. Não pode aliás deixar de se notar a extraordinária semelhança com a figura do Comissário Político, que existia organicamente nas unidades militares do Exército Vermelho e dos Exércitos organizados à sua semelhança. O assessor está ali para condicionar o comandante, trata-se de uma espécie de grilo falante que não lhe tira nenhuma responsabilidade, mas o limita na avaliação do risco, selecção do tipo de armas e munições, efeitos colaterais, efeitos políticos e limitações relativamente a alvos.

A exacerbação legalista contém óbvias perversões.

Os decisores e executores, porque não querem correr o risco de virem a ser processados, autolimitam-se na conduta da guerra, tendendo a agir de acordo com as mais cautelosas interpretações do Direito, em detrimento das modalidades de acção militarmente mais adequadas. Os riscos de fracasso e de baixas próprias tendem a aumentar em conformidade, já que a parte que não respeita as regras passa a usá-las como instrumento táctico, colocando os seus meios junto a populações civis, doravante usadas como escudo humano e instrumento de propaganda. E serão estas as principais vítimas.

Quem vislumbra no horizonte a paz perpétua, acredita ser um passo no caminho do progresso, da paz e do bem.

O problema é que o DI, se seguido por apenas uma das partes, torna a sua vitória impossível e a derrota provável. As leis humanitárias em particular, porque levam apenas em conta as consequências para os civis, criam uma artificial e maniqueísta dicotomia entre as partes em guerra e os respectivos cidadãos, como se os exércitos em luta fossem os “maus” e os civis de ambos os lados, os “bons”. As prioridades invertem-se e o conselheiro jurídico choca com o decisor militar cujo objectivo principal, recorde-se, não é proteger os civis do inimigo, mas sim ganhar a guerra e, desta maneira, proteger os seus civis e soldados.

Aconteceu no Iraque, no Líbano, em Gaza, no Afeganistão, no Irão, etc, e vai continuar a acontecer cada vez mais. Esta é uma das razões pelas quais os EUA não são signatários do TPI e consideram de tal modo inaceitável o seu estatuto, que se reservam o direito de usar todos os meios necessários (leia-se, a força) para subtrair cidadãos norte-americanos que caiam na sua alçada, bem como sancionar e perseguir os juízes, procuradores e facilitadores que se arroguem competência para os investigar, processar e julgar.

Este tipo de limitação pelo direito afecta exclusivamente os países do Ocidente.

Para os outros a guerra é irrestrita. Nem a Rússia, nem o Irão, a Síria, a China, o Hamas, o Hezbolah, etc., hesitam em usar todos os meios e estratégias. A Rússia destrói cidades inteiras, o Irão e o Iraque, por exemplo, alvejaram reciprocamente as suas cidades com todo o arsenal disponível, durante a guerra Irão-Iraque, o Iraque atacou cidades israelitas com mísseis balísticos, a Al Qaeda usou suicidas para lançar aviões civis contra alvos civis, os proxies iranianos alvejam deliberadamente as povoações israelitas e o governo do Sri Lanka não hesitou em usar toda a força disponível para destruir os Tigres Tâmil, profundamente misturados com a população.

Em Gaza e nas guerras que o Ocidente tem pela frente a distinção entre civis e militares não é fácil de fazer e sê-lo-á cada vez menos, por opção estratégica dos seus inimigos. As regras não vinculam todos por igual porque a chamada lei internacional, criada pelo Ocidente, é apenas vinculativa para nós e os nossos inimigos aprenderam a usar, com o maior cinismo, a retórica que lhe subjaz.

A distinção entre combatentes e não-combatentes, a que nos habituámos e sobre a qual, a Ocidente, se ergueram os edifícios éticos e legais, está completamente obliterada.

Se não percebermos isto, o nosso futuro não é auspicioso e Israel é apenas o canário na mina.