1 Esta semana saíram as tradicionais colocações para acesso ao Ensino Superior em Portugal. Entre a habitual obsessão com as classificações dos últimos colocados em cada curso, os rankings de cursos (por média ou empregabilidade) e as histórias individuais que se contam nos meios de comunicação social, não vi quase nenhuma discussão sobre os problemas fundamentais que a Universidade enfrenta hoje em Portugal. Infelizmente, a dimensão dos problemas é de tal ordem, e a inépcia do Governo e da ministra do Ensino superior perante o assunto tão gritantes, que o mais provável é assistirmos àquilo a que António Costa nos habituou. Em vez de desenharem políticas públicas inteligentes e aplicá-las com rigor, os actores políticos preferem lançar “estratégias de comunicação” que abafem o problema durante uns dias e, no essencial, deixá-lo arrastar. Como vemos no caso da habitação ou do investimento público em transportes, deixar o problema arrastar-se tem tudo para exponenciar a sua dimensão até atingir um nível dramático que exigirá um investimento público ainda maior se ainda quisermos resolver a situação.

2 Neste reinício de ano lectivo, o problema que mais tem sido discutido é a habitação para os estudantes. Naturalmente, num contexto onde o acesso à habitação nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto é difícil para muitas famílias e jovens que já se encontram no mercado de trabalho, o efeito análogo faz-se sentir também na oferta de habitação a preços acessíveis para estudantes. Em Portugal, a oferta de residências universitárias e públicas é irrisória, o que obriga a grande maioria dos estudantes deslocados a optar por quartos (ou apartamentos) no mercado privado. No mesmo mercado privado onde casas e apartamentos “inteiros” também são dispendiosos de arrendar. Assim, não é estranho vermos quartos arrendados a estudantes por 400 ou 500 euros mensais, ou seja, cerca de 6000 anuais, sem contar com todas as restantes despesas necessárias. Naturalmente, num país onde 67% dos agregados familiares recebe menos de 19.000 euros por ano, antes de impostos, e 80% menos de 27.500 euros brutos anuais, esse valor simplesmente não é suportável para muitas famílias. Tudo isto se afigura mais grave se atentarmos às sucessivas declarações que os governos de António Costa têm vindo a fazer. Desde 2015, ano após ano, anuncia-se a construção e disponibilização de mais residências universitárias a preços acessíveis. No início de cada ano lectivo, quando o assunto ganha saliência mediática, tal como aconteceu este ano, o governo volta a reiterar a sua promessa. Depois, nada acontece. É bom relembrar os mais distraídos que, em teoria, este governo deveria ter um programa de cariz social-democrata. Na prática, apontam-se metas, trabalha-se para reforçar o orçamento e outras expressões equivalentes onde se está sempre a planear a acção futura, mas o dito orçamento nunca é executado, nem a promessa concluída.

3 A questão da inércia no apoio à habitação de estudantes torna-se mais gritante quando posta em contraste com a política de propinas que os governos de António Costa, principalmente o da famosa “Geringonça”, decidiu pôr em prática desde 2016. Talvez incentivado pelos quadros do Bloco de Esquerda, socializados politicamente nos ambientes e lutas estudantis dos anos 90, entretanto obsoletos e desajustados ao mundo de hoje, Costa decidiu pôr em prática uma política de redução de propinas, de um tecto máximo de 1065 euros anuais para os actuais 697 euros. No mesmo período, nada fez quanto à habitação estudantil e muito pouco fez para conceder mais bolsas de apoio à frequência do ensino superior para estudantes de baixos rendimentos. A esta luz, não é possível interpretar a redução de 368 euros anuais nas propinas como algo para além de uma medida simbólica e populista, típica, de resto, da agremiação de extrema-esquerda que apoiou a Geringonça. Nenhum estudante deixa de frequentar o ensino superior por causa desses 368 euros. Deixa, isso sim, pelos 6000 euros necessários ao simples acto de alojar-se na cidade onde estuda.

4 Existem muitos modelos de financiamento do ensino superior. Em quase todos os países, as universidades são financiadas por uma combinação de contribuições directas do Estado, contribuição privada das famílias e dos alunos que frequentam o ensino superior e, ainda, receitas próprias das universidades vindas de projectos de investigação, de consultoria, parcerias com entidades privadas, entre outros. Não é óbvio qual deve ser o rácio entre financiamento público directo e financiamento por parte dos alunos. Por um lado, a educação universitária constitui, sem dúvida, uma enorme externalidade positiva para toda a sociedade, e não beneficia apenas aqueles que frequentam o ensino superior. Esses estudantes contribuem depois para a economia como um todo e, em teoria, para a qualificação de muitos outros sectores da sociedade que, assim, com isso, podem tomar, em média, melhores decisores. O crescimento económico moderno é baseado no capital humano qualificado. Não há outros atalhos ou fórmulas mágicas. Nesse sentido, o financiamento público da frequência do ensino superior, principalmente em países onde o IRS é progressivo, pode ser visto como um investimento e um bem público perfeitamente aceitáveis. Por outro lado, também é verdade que, em todos os países, a fatia de população que frequenta o ensino superior é mais privilegiada do que a restante sociedade. Em Portugal, em 2022, apenas 31.5% da população entre os 25 e os 64 anos tinha o ensino superior completo, o que significa que mais de 68% não tem. Em nenhum país da União Europeia, à excepção da Irlanda, existe, em 2022, uma maioria de pessoas entre os 25 e os 64 com o ensino superior completo. Claro que, entre as gerações mais novas, o cenário é cada vez mais outro. No entanto, mesmo olhando apenas para a população actualmente entre os 30 e os 34 anos, a maioria também não tem o ensino superior completo (57%) em Portugal em 2022. A questão que se coloca é se o Estado deve utilizar recursos escassos e de todos para “ajudar” excessivamente uma fatia privilegiada da população que, ainda por cima, receberá no futuro, ela própria, rendimentos superiores à média. Não é uma decisão fácil e, apesar da enorme diversidade de modelos, em quase todos os países (mesmo nos Estados Unidos) o financiamento é, em grande medida, misto. Pessoalmente, aprecio o modelo de pagamento diferido em que os estudantes pagam uma percentagem do seu rendimento futuro (com um tecto máximo) nos 10 ou 20 anos posteriores à conclusão da licenciatura. Não gosto de lhe chamar empréstimo, pois tal levanta papões desnecessários e não é feito perante bancos ou instituições privadas cujo objectivo é o lucro, mas sim um “contrato” entre o Estado e o cidadão que frequenta a universidade. Este modelo, em vigor na Austrália, tem o mérito de não onerar os não-privilegiados com as despesas dos privilegiados e também de não onerar excessivamente os licenciados, mas apenas na medida das suas possibilidades. Um licenciado que ganhe 1000 euros por mês não pagaria o mesmo do que um que ganhe 3000. O fardo é proporcional. Finalmente, tem o mérito de não “estragar” os incentivos, na medida em que, como é uma percentagem fixa e com tecto máximo, os trabalhadores em causa continuam a ter incentivos para querer auferir o salário mais elevado possível. Infelizmente, creio que é uma miragem achar que este modelo será implementado ou sequer considerado em Portugal. Já disse que a discussão pública e de políticas públicas é paupérrima em Portugal?

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5 Os governos supostamente socialistas de António Costa conseguiram, no entanto, um feito extraordinário. Reduziram a contribuição privada das famílias para o financiamento do ensino superior, através da redução das propinas, enquanto reduziram também o financiamento público directo proveniente do Orçamento do Estado. Em 2009, o Estado pagava uma dotação orçamental directa às instituições de ensino superior de 5091 euros por estudante no ensino universitário. Em 2023, paga 4644 euros. Ou seja, uma redução do valor nominal e uma redução brutal do valor real. Considerando a inflação, apenas para manter o orçamento de 5091 euros por estudante de 2009 seria necessário que o Estado estivesse a pagar 6235 euros por estudante hoje. Em 2023, o Estado paga apenas 75% daquilo que pagava em 2009 por estudante! O mesmo aconteceu com a dotação global directa inicial do Orçamento do Estado para as instituições de ensino superior. Isto significa que, na prática, as instituições de ensino superior portuguesas foram completamente estranguladas financeiramente na última década, primeiro pelo programa de ajustamento da troika, e, depois, por decisões erradas e voluntárias de António Costa. Para além da redução real do orçamento para o ensino superior proveniente do Orçamento do Estado, temos ainda o bizarro sistema de financiamento que aloca esse dinheiro por universidade. Em vez de se aplicar uma fórmula existente e legalmente em vigor, que considera, por exemplo, o número de estudantes, uma série de interesses instalados (literalmente) consegue que, ainda hoje, a fórmula não seja aplicada e que cada universidade receba a mesma proporção que recebia há mais de 10 anos, independentemente de ter crescido ou não! Como muito bem explicou o Luís Aguiar-Conraria há uns tempos no Expresso, isto prejudica (perversamente) as universidades que mais cresceram na última década, nomeadamente a Universidade Nova de Lisboa, a Universidade do Minho e o ISCTE, uma vez que têm, na prática, um orçamento por estudante muito inferior àquele que deveriam ter.

6 Sempre que se escreve ou discute o ensino superior, aparecem uma série de pessoas a argumentar que “nem todos precisam de um canudo” ou “já há licenciados a mais”. Creio ser necessário esclarecer equívocos. Primeiro, como os números em cima mostram, não há licenciados a mais em Portugal, em termos percentuais, em relação aos países mais desenvolvidos com quem nos queremos comparar. Antes pelo contrário, ainda há licenciados a menos. Segundo, é evidente que nem todas as profissões na nossa sociedade precisam de uma licenciatura. Algumas destas profissões, como canalizadores ou eletricistas, são absolutamente fundamentais. Também é perfeitamente aceitável e até desejável que algumas pessoas se qualifiquem através de cursos técnicos especializados para a profissão que vão exercer. No entanto, as políticas públicas desenham-se pensando no país como um todo, na população em geral, e não em casos individuais. Tudo aquilo que sabemos sobre o desenvolvimento económico das nações aponta para a conclusão de que o crescimento sustentado, que enriqueceu e continua a enriquecer nações, se baseia na qualificação da população, que assim pode trabalhar em coisas que antes não podia, criar empresas que antes não criava, gerar conhecimento e inovação que são, em todo o lado, o motor do capitalismo e da sua “destruição criativa”. Foi assim nos EUA que, como Katz e Goldin mostram, no seu magistral The Race between Education and Technology, conseguiu a sua hegemonia económica no século XX, em grande medida, porque se antecipou aos países europeus, em décadas, à massificação do ensino secundário. E, no pós-guerra, quando também se antecipou em décadas, aos países europeus na massificação do ensino universitário. Foi assim em países altamente qualificados da antiga esfera soviética, como a Estónia, que basearam o seu crescimento económico impressionante e inovador no enorme capital humano, que pôde finalmente florescer assim que teve acesso a um influxo de capital físico e financeiro no pós-1990. É assim até no Vietname que, nas últimas duas décadas, observou uma expansão enorme do ensino universitário e tem-se destacado, na sua região, no ritmo admirável do seu crescimento económico.

7 Finalmente, uma nota. A expansão brutal do ensino superior desde 1990, em Portugal, é evidentemente louvável e, possivelmente, um dos maiores sucessos da nossa vida colectiva. Foi também indispensável e insubstituível. No entanto, a expansão tão rápida do número de cursos, licenciados, instituições e professores universitários fez-se, possivelmente, à custa de uma qualidade mais baixa do que seria desejável num mundo em que o crescimento fosse mais gradual. Agora que a expansão parece ter abrandado, uma vez que chegámos aos valores de fluxo de novos licenciados semelhantes aos dos nossos pares, creio ser altura de deixarmos de nos focar na quantidade, mas sim na qualidade. Temo que, em muitos casos, se tenha sacrificado a qualidade média do conteúdo daquilo que é ensinado e investigado nas universidades, bem como na competência dos professores universitários. Provavelmente, tal era necessário. Mas agora está na altura de nos focarmos neles.

P.S. – Este artigo debruça-se apenas sobre a componente do ensino superior que as universidades ministram. Como sabemos, a outra grande função social das universidades é a investigação. O estado da investigação universitária em Portugal é tão ou mais lastimável que o do ensino superior, pelo que tal assunto terá de ficar para outra(s) crónica(s).