Stefan Zweig deixou-nos bem explícito como era a Europa em que nasceu. Ler ‘O Mundo de Ontem – recordações de um europeu‘ não é apenas um exercício de nostalgia de algo que não presenciámos, mas de que alguns de nós ainda ouviram falar. A Europa antes da Grande Guerra não era um continente de nações, mas de grande estados com diversas culturas e várias religiões. Algo difícil de descrever porque se tratava de uma realidade que definia o âmago do ser europeu e que só se experimentássemos seria possível que a conhecêssemos verdadeiramente.

Foi essa diversidade, essa riqueza que produziu a evolução científica que marcou a Europa desde São Tomás de Aquino. Foram séculos de progresso filosófico, político, económico, científico, social e religioso. A efervescência europeia conduziu-a ao resto do mundo e, depois, a dominá-lo. Até que ocorreram as duas guerras mundiais do século XX. A explicação para o tiro que os europeus deram no próprio pé não reside só no nacionalismo que Napoleão disseminou e cimentou pelo continente fora nem apenas na cultura urbana e de massas nascida com a industrialização. Tudo isso podia ter acontecido sem que algo que vinha de trás não tivesse assumido proporções catastróficas. O rascimo, mais especificamente o anti-semitismo, o ódio aos judeus, à diferença, aquela característica europeia que se manteve ao longo dos séculos, par a par com o desenvolvimento, mas que acabou por sucumbir à inveja e ao medo. O que aconteceu por toda a Europa, entre os finais do século XIX e 1945, foi uma perseguição cada vez mais acentuada e contínua de judeus que resultou no fim da diversidade europeia. A nova realidade, na qual já nascemos e conhecemos bem, é uma Europa dependente dos EUA que recebeu de braços abertos aqueles de que dela fugiram.

O ataque do Hamas a Israel fez renascer esta ferida latente. Milhares de pessoas, que não criticaram nem questionaram a acção do Hamas, condenaram de imediato a reacção de Israel, que pretende destruir uma organização terrorista. Por muito que nos falem de justiça e de direitos humanos, a explicação para tais comportamentos só pode ser uma: o anti-semitismo. Apenas o ódio ao judeu explica tanta raiva e ódio. Claro que há imensos argumentos, a maioria deles falsos. Mas não esqueçamos que o nazismo também tinha um raciocínio próprio, todo ele falso, que era utilizado à exaustão para os seus lacaios comprovarem as suas acções. O ódio tem esta característica curiosa de ser explicado com lógica e não ter qualquer razão.

A história da Europa depois de 1945 é uma história de contrição. O projecto europeu não foi só uma forma de conter a Alemanha e trazer paz e bem-estar para os europeus. Foi também um modo de nos reconciliarmos com o passado. Quem diz isto preto no branco é o vice-chanceler alemão, Robert Habeck, e um dos principais dirigentes dos Verdes alemães.

A nova Europa seria uma casa de nações com lugar para todos porque na diversidade de cada um reside a riqueza dos europeus. O processo de recuperação é lento até porque a maioria das comunidades judaicas foi dizimada. Mas é um caminho que está a ser percorrido com resultados que se esperam positivos. O regresso do anti-semitismo à Europa seria um novo tiro no pé, desta vez com efeitos ainda mais catastróficos. A acontecer novamente, o empobrecimento cultural e espiritual, a causa maior do nível de vida europeu, fica definitivamente posto em causa.

São motivos para que sejamos implacáveis contra qualquer forma de manifestação de racismo e anti-semitismo. Os extremos, sejam estes de esquerda ou de direita, são marcadamente anti-semitas em virtude do ódio que caracteriza as suas ideologias mas também porque o espalhar desse ódio é a melhor forma de alcançarem o seu fim principal: o fim dessa Europa livre, tolerante na diversidade, unida na adversidade, e que é fruto da uma riqueza cultural e espiritual que decorre da sua longa história.

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