Há dias o secretário-geral da ONU, António Guterres, fez as seguintes declarações: “É importante reconhecer também que os ataques do Hamas não aconteceram num vácuo. O povo palestiniano foi submetido a 56 anos de ocupação sufocante”.

Por uns momentos Guterres esqueceu-se que não era uma pessoa com uma conta no Twitter, mas o secretário-geral das Nações Unidas. Que o seu papel é mediar conflitos. Procurar consensos. E o que fez ele? Simplesmente, sugeriu que os actos terroristas do Hamas, no passado dia 7, se justificam pelo que Israel fez ao povo palestiniano nos últimos 56 anos. Perguntar-me-ão: é mentira? Por acaso é porque os palestinianos estão sequestrados pelo Hamas e não por Israel. Mas, foquemo-nos neste ponto: é essa a função do secretário-geral das Nações Unidas? Não é. O seu papel seria o de mediador entre Israel e os Estados árabes, na tentativa de estes reconhecerem a existência do Estado judaico e então, sim, pressionar Israel a ceder territórios para o novo Estado Palestiniano.

Mas não foi isso que fez. Preferiu ficar-se por uma sugestão grave com interpretações várias. A pior delas é que o Holocausto também não nasceu do vácuo. Nenhum mal, por muito absoluto que seja, nasce do vácuo, mas não deixa de estar errado, de ser horrendo e deve ser denunciado. Naturalmente, António Guterres não se vai demitir, mas o seu mandato ficou definitivamente comprometido, o que já é suficientemente grave. Guterres cometeu um erro de palmatória e a ONU vai precisar de muitos anos e muito trabalho para recuperar. As suas declarações constituem um erro grosseiro de um homem permeável que mostrou falta de tacto quando esta é uma das qualidades mais importantes num político.

Por sinal, António Guterres surge destacado nas sondagens para as próximas presidenciais. É extraordinário como um ex-Primeiro-Ministro que se demitiu do cargo para evitar que o país caísse num pântano (outra declaração que ainda está para ser devidamente esclarecida), seja apontado como possível presidente da República. Por muitas qualidades pessoais que António Guterres tenha, o que explica o deslumbramento por alguém que fracassou duas vezes? O ser ilustre? Se sim, onde está o nosso discernimento? Atenção que a minha crítica não reside na celebridade por si mesma, mas precisamente porque Guterres não se compara a Ramalho Eanes, a Mário Soares ou a Cavaco Silva. Se temos de reconhecer e honrar o mérito também devemos colocar o malogro no devido lugar. E não fazer de conta que os erros são irrelevantes apenas porque quem os comete tem ‘posição na sociedade portuguesa’.

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É possível que esta falta de exigência, esta complacência para com a autoridade e perante quem tem influência explique boa parte do marasmo em que se tornou o actual governo. Saímos de Outubro com a ameaça de Novembro ser o pior mês de sempre para o SNS depois de anos a ouvirmos que era o melhor do mundo e que tudo ia bem. Perante os problemas, fecharam-se os olhos e taparam-se os ouvidos. O SNS era o SNS e isso, o ser fantástico, bastava. Não havia lugar à discussão porque quem o discutisse estava a pôr em causa o próprio SNS. Raramente houve debate, poucas vezes se escutaram os que apontavam para os problemas e sugeriam soluções. Pelo contrário, o governo limitou-se a colocar um ministro que não faz mais do que disparar convictamente frases sem qualquer relação com a realidade. E isto é possível porque novamente veio ao de cima a falta de exigência, a complacência para com a autoridade e a influência de quem manda.

Os processos acumulam-se nos tribunais. Há meses que os funcionários judiciais estão em greve. Onde está a ministra da Justiça? O que é que António Costa pensa sobre isto? Não sabemos nada. E pouco se pergunta. A Justiça é uma das funções essenciais do Estado, é um princípio basilar do Estado de Direito. Mas o país compraz-se com um encolher de ombros, quiçá um suspiro. Porquê a chatice, para quê criar ondas? De que serve questionar António Costa, o homem a quem cabe cumprir a função de governar porque foi educado para tal? A crise deve-se a uma visão corporativista do sector que nenhum governo quis ou foi capaz de tornear até que se chegou a um sistema desadaptado da vida actual e cuja mudança é cada vez mais difícil devido aos interesses em jogo. Ninguém quer perder o pouco que tem e o Estado não tem força para implementar um caminho.

Outro caso paradigmático é Pedro Nuno Santos. O ministro que gastou 3,2 mil milhões de euros na TAP, que não reconhece o erro e que fez o possível para que a companhia aérea continuasse pública apesar da incapacidade do Estado em gerir um negócios com aquelas especificidades sem interferência do poder político. Apesar de tudo isso, Pedro Nuno Santos ganhou um lugar de destaque na televisão e é considerado o mais forte candidato à sucessão de António Costa. Atenção que refiro-me a um político que falhou redondamente enquanto ministro. Como é que se explica esta divergência entre falhar na função e o sucesso na carreira? Novamente só vejo uma resposta, a falta de exigência, a complacência para com a autoridade e a influência de quem manda.

Por alguma razão vivemos numa democracia. Para que se escutem as críticas e se estudem alternativas. Não para que uma narrativa domine e sufoque o debate como aconteceu na habitação, com as consequências que conhecemos. Sucede que uma democracia liberal pede interesse, espírito crítico, análise, procura de conhecimento, moderação e bom senso. Apesar disso, o que transparece é que passamos rapidamente da apatia para a indignação de quem acorda demasiado tarde. Uma anestesia colectiva que beneficia quem manda porque sim e ainda os que, com demagogia, se opõem porque não.