Desde tempos imemoriais que a Igreja celebra os seus heróis, os santos. Os mártires foram os primeiros a serem festejados liturgicamente. Durante os primeiros três séculos da sua bimilenar História, a Igreja foi furiosamente perseguida pelo império romano e, por isso, muitos dos primeiros cristãos foram mortos por ódio à sua fé. Como “não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13), a Igreja entende que o martírio é razão suficiente para que o fiel seja incluído na lista, ou canon, dos bem-aventurados, isto é, canonizado.

Em 313, com o édito de Milão, a Igreja católica deixou de ser perseguida pelas autoridades romanas e, portanto, desde então foram menos frequentes os martírios, embora sempre tenha havido, como também agora há, perseguições aos cristãos. A partir daquela data, os fiéis que, em sua vida, mais se foram destacando na prática da caridade e demais virtudes cristãs, foram propostos como exemplo aos fiéis, na qualidade de confessores da fé.

Antes de se proceder a uma beatificação, a Igreja investiga diligentemente a vida do candidato aos altares, principalmente os seus últimos anos. Mesmo quando este processo conclui a sua provável santidade, a Igreja entende que o seu juízo, ainda que humanamente fundado, é insuficiente para propor um determinado fiel como bem-aventurado, até porque a canonização de um servo de Deus compromete a infalibilidade papal. Para este efeito, participa no processo de beatificação o chamado ‘advogado do diabo’, que tem por missão relevar todas as objecções pertinentes à causa de que se trate. Também é da praxe pedir à providência divina um sinal extraordinário, ou milagre, que ateste a santidade do eventual bem-aventurado.

O milagre tem de reunir, pelo menos, duas condições: a de se tratar de um facto inexplicável, em termos científicos, e que esse efeito absolutamente desproporcionado tenha sido pedido apenas e só ao servo de Deus em causa. Por exemplo, a cura instantânea de um doente oncológico, em estado terminal, devidamente autenticada por exames médicos, é, obviamente, um forte indício de milagre.

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Muito embora as curas inexplicáveis sejam as mais comuns, também pode haver milagres de outros tipos. Recordo ter ouvido um padre, perito do dicastério para as Causas dos Santos, referir um caso atípico: numa embarcação, a água irrompeu por uma escotilha, que era impossível fechar. Ante esta situação, um membro da tripulação, ao mesmo tempo que tentava impedir a inundação e naufrágio, invocou um servo de Deus de que era devoto e, graças a Deus e a essa piedosa intercessão, conseguiu fechar a escotilha. Pôs-se depois a questão de saber se o podia ter feito naturalmente ou, pelo contrário, o facto só tinha explicação sobrenatural. Para este efeito, foi preciso calcular cientificamente a pressão e caudal da água a que o dito sujeito opôs toda a sua força, para concluir que esse seu esforço natural não podia explicar o efeito alcançado e, portanto, o mesmo foi considerado de natureza milagrosa e, como tal, susceptível de justificar a beatificação do servo de Deus invocado nessa circunstância.

O Santo Padre pode dispensar a prova do milagre, mas não costuma fazê-lo, excepto nas chamadas canonizações por equipolência, ou seja, por homologação de uma tradição multisecular. Foi o caso, por exemplo, da canonização recente do santo Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, que participou presencialmente no Concílio de Trento. Uma sua obra, sobre o ministério episcopal, foi distribuída a todos os padres conciliares do Vaticano II, como exemplo do que deve ser, também nos tempos modernos, um bispo católico.

Ocorrida, em 2005, a morte de João Paulo II, não faltou então quem pedisse a canonização imediata do santo pontífice – santo súbito! – cuja santidade de vida era por demais evidente. Felizmente, o seu sucessor na cátedra petrina, Bento XVI, entendeu preferível não conceder esse privilégio à sua causa de beatificação, pelo que esta teve de cumprir todos os trâmites previstos, o que redundou em seu benefício, sobretudo cara à posteridade: se a sua elevação aos altares tivesse sido fruto de uma compreensível emoção de momento, as gerações futuras poderiam questionar a sua credibilidade o que, graças ao rigor dos procedimentos verificados, já não é admissível para quem esteja de boa-fé.

Se é verdade que a santidade é a normalidade da vida cristã, e não a sua excepção, também não se pode negar que na vida da Igreja, desde o princípio, houve exemplos menos próprios, a começar por Judas Iscariotes, o apóstolo traidor, cuja existência e traição a Igreja nunca negou, nem escondeu. Durante as perseguições dos três primeiros séculos, houve igualmente cristãos que apostataram, os chamados lapsi, em latim, que, uma vez arrependidos, podiam regressar à comunhão eclesial.

Também agora, a Igreja dos santos é a dos pecadores: pense-se, por exemplo, nos abortos praticados por fiéis católicos, nos abusos de menores por membros do clero, nos adultérios cometidos por pessoas casadas pela Igreja, nas heresias proferidas por membros da hierarquia, na hipocrisia dos católicos que defendem a eutanásia, ou professam ideologias anticristãs, como o comunismo, ou o nazismo, etc. Não se podem negar estes tão infelizes casos, que a Igreja conhece, sabendo que são a excepção que confirma a regra da santidade. Do mesmo modo como, há dois mil anos, para um apóstolo traidor, houve onze que foram santos e mártires, também agora, para uma dolorosa excepção, há dez ou mais cristãos que são santos.

No calendário católico não há, nem nunca poderá haver, um dia do orgulho. Com efeito, essa atitude é a que define o inimigo de Deus por antonomásia, cuja revolta contra a Criador foi, sobretudo e principalmente, um acto de soberba. Por isso, o orgulho é a marca própria de todas as empresas diabólicas, enquanto a caridade, que pressupõe a humildade, é a essência da santidade cristã. Mas se, por absurdo, houvesse um dia do orgulho cristão, esse deveria ser, sem sombra de dúvida, o 1º de Novembro, solenidade de todos os santos.

Não se pense que, para se ser santo, é preciso fazer coisas extraordinárias. A criatura humana mais santa, a única à qual se atribui a santidade em grau superlativo, é a Santíssima Virgem Maria, a Mãe de Jesus, uma mulher casada com um artesão e que não consta que tenha feito, em vida, nenhum milagre. Ser santo não consiste em fazer coisas extraordinárias, mas em fazer extraordinariamente bem o que tem de se fazer porque, na realidade, o que conta é o amor (1Cr 13, 1-13).